terça-feira, 30 de dezembro de 2008

À força, sempre, por Daniel Santos

Daniel Santos (*)



Uma estranha nave pousou na zona norte – alguém viu, e a notícia convulsionou a cidade. De licença no serviço, corri a casa, mas minha mulher, que me recebeu com um beijo frio demais, disse estar tudo bem.

Sua entonação átona me intrigou, e mais ainda quando, ao tocá-la, senti-lhe a aspereza da pele. A intuição alertou: não era ela! O corpo, sim, mas de resto ... Tentei, então, escapulir, e dois cunhados me detiveram.

Foi minha primeira e última reação, que lembre. Aí, chegaram vizinhos, amigos, familiares. Casa cheia, encostado contra a parede, quase experimentei o pânico, mas entendi: apenas me queriam junto deles.

Por que não? E cedi ao cerco. Claro, estranhei mutações no corpo da esposa; a fosforescência da pele, por exemplo. Mas, logo, manifestei iguais sintomas. Não lembro quem fui nem lamento quem hoje sou.

À noite, nossas mãos ganham pontos luminosos como constelações. Alguma estrela nos ausculta, logo nos chamará. E iremos. Que outro jeito! Afinal, também aqui estamos todos à força. Não tem sido assim sempre?

(*) Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de O Estado de S. Paulo e da Folha de S. Paulo, no Rio de Janeiro, além de O Globo. Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

"Felizes para sempre" uma ova!, por Marcelo Sguassábia

Marcelo Sguassábia (*)



O sujeito dá vida à gente, cria aquela história maravilhosa, diz que todos viveram felizes para sempre, põe um ponto final e se arranca. Nunca mais volta para ver o que aconteceu depois às suas indefesas criaturas, no mundo do faz-de-conta. Ora, quem põe filho no mundo tem responsabilidades a honrar. Como é que pode um autor se comprometer com a posteridade e colocar sua credibilidade em jogo, fadando seus personagens a um destino cor-de-rosa sem dar a eles meios para isso? Felizes para sempre, essa é boa...

Vejamos o drama do Prático, o porquinho precavido que construiu a casa de tijolos. Como o conto de fadas tinha que terminar logo, o suíno se viu forçado a correr com a obra e uma semana depois a casinha tinha infiltração, três grandes rachaduras que iam do chão ao teto e um fiscal da prefeitura todo dia batendo na porta, atormentando o proprietário por causa do Habite-se. Tão logo tomou conhecimento do infortúnio, o lobo voltou à casa e nem precisou soprar para que viesse abaixo. Em dois minutos já estava com os três leitões debaixo do braço. Pôs Cícero para engordar no chiqueiro, Heitor foi alocado nos afazeres domésticos da casa avarandada do malvado e Prático foi obrigado a travestir-se de veado e ganhar a vida com ofícios pouco familiares, entregando ao lobo todo o michê do dia. O curioso é que perante a opinião publica o lobo ainda posa de benfeitor, por ter tirado os porquinhos da indigência e dado a eles um abrigo digno. Dizem inclusive que fundou uma ONG, chamada “Lobo Bom”, que se dedica a difundir pelos reinos mais distantes os ideais da filantropia e da solidariedade.

Mas é preciso admitir que sorte pior teve a Cinderela. Antes que a tinta do original da história secasse sobre o pergaminho, começou o calvário da heroína. Horas após o suntuoso casório, quando o príncipe foi dar um cata na moça pra fazer neném, o salto do sapatinho de cristal esquerdo espatifou-se a caminho da cama, depois de patinar num resto de brigadeiro jogado ao chão por um convidado mais porco que Heitor, Prático e Cícero juntos. Além do cristal do sapato, quebrou-se também o fêmur da delicada Cinderela.

A forçada quarentena da moça, devido à cirurgia para colocação de 16 pinos na perna, obrigou o fogoso príncipe a aplacar os hormônios junto a um sem-número de donzelas do reino. Sem sex-appeal aos olhos do marido, Cinderela passou a ajudar as faxineiras reais na varrição e no enceramento do salão de baile. Hoje faz doces para fora, com a abóbora que sobrou da carruagem. Tenta com seu advogado tornar sem efeito a autuação da vigilância sanitária, que após análise bacteriológica julgou a referida abóbora imprópria para consumo. Enquanto aguarda decisão judicial, diversifica sua produção com outras qualidades de doces. Só não aceita encomendas para brigadeiros, por motivos óbvios.

Estes são apenas dois exemplos, dentre muitos que poderia citar, da orfandade a que nós, personagens, estamos submetidos. Abrace, leitor amigo, a nossa causa. Não caia no conto de fadas!

Assinado,
O Patinho Feio, que voltou a ser feio após 14 gloriosos dias com jeitão de cisne.

(*) Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A vida sexual do Louro, por Ruth Barros

Ruth Barros (*)



Contos da Mula Manca

Adotei o Louro, que apesar do nome é cachorro. Ele acabou sendo chamado de papagaio por uma simples questão física, o Louro é um vira-lata louro mesmo, lindo e ordinário, ou Otto. Para quem se lembra, Bonitinha mas Ordinária tinha como outra opção de título ou Otto Lara Rezende, que enfurecia o próprio contra Nelson Rodrigues, o autor, que dava risada.

Pelas minhas contas o Louro deve ter uns três anos. Sei pouco de sua vida pregressa, faz pouco mais de um ano que está comigo, mas presumo que tenha sido difícil. Ele é ótimo cão de guarda e melhorou de gênero aqui em casa, mas continua espantando amigos, inimigos e simpatizantes, além de eventuais pretendentes incautos. Se homem já está difícil o Louro fez do tipo substantivo abstrato.

Deve ser vingança. Já que ele não pega nada, ninguém mais há de na casa onde ele impera. A maioria das cachorras da atualidade é castrada. Quem não é não vai se dar ao luxo de encarar um vira-lata de atitude, dificilmente na vida real ele vai repetir o enredo de A Dama e o Vagabundo. Enquanto espera uma namorada, o Louro atacou as almofadas da sala. Antes que todas fossem para o brejo, separei a que parecia ter agradado mais, com um lado de veludo cotele verde musgo e o outro um jeans fininho, macio.

Não sei se tais condições estéticas foram percebidas pelo cão, mas ele encoxa a almofada sistematicamente, principalmente na vista de uma rara visita de cerimônia. Vai cavando buracos na amada e destroçando seu recheio, espalhando pelo quintal para meu desespero. E em mais uma demonstração de que homens e cães não são lá tão diferentes, depois de repetir a façanha várias vezes, ele larga a almofada ao relento, não se dando nem ao trabalho de reconduzi-la à sua caminha.

(*) Maria Ruth de Moraes e Barros, formada em Jornalismo pela UFMG, começou carreira em Paris, em 1983, como correspondente do Estado de Minas, enquanto estudava Literatura Francesa. De volta ao Brasil trabalhou em São Paulo na Folha, no Estado, TV Globo, TV Bandeirantes e Jornal da Tarde. Foi assessora de imprensa do Teatro Municipal e autora da coluna Diário da Perua, publicada pelo Estado de Minas e pela revista Flash, com o pseudônimo de Anabel Serranegra. É autora do livro “Os florais perversos de Madame de Sade” (Editora Rocco).

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Desencontros, por Aliene Coutinho

Aliene Coutinho (*)



Penso, logo fujo de mim.
Vou longe, para longe
do que me cerca.
Nada me atinge,
vôo.
Posso estar onde for,
com quem for,
quando penso,
fujo de mim e
vou!

No dia que quis ser eu,
desisti.
Havia tanta gente
dentro de mim
que preferi
ser todos!

Me vesti de saudade,
me despi de esperança,
lhe esperei nas esquinas,
cansei!

(*) Jornalista e professora de Telejornalismo

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Domingo no Quintal do Cosme, por Urariano Mota

Urariano Mota (*)



Os dados físicos indicam que o Quintal do Cosme fica na Estrada da Batalha, 4218, Prazeres, Jaboatão, Pernambuco. O Quintal é mesmo um quintal com mangueiras em uma casa simples. Ali se pode e se deve ir a partir das 13 horas, sempre aos domingos, duas vezes por mês. “Domingo, sim, domingo, não”, informa-nos a filha do fundador.

O que os dados físicos não dizem é que ali há concertos de música, encontros de chorões e amantes do choro. Com uma característica rara: os músicos ali tocam de graça. Minto, os músicos ali pagam para tocar, porque eles mesmos pagam o que bebem e o que comem ao fim. E que músicos! que maravilhosa velha guarda. Por isso os tais dados factuais, da notícia, jamais explicarão que ao Quintal se vai e se entra ao som de “Sofres porque queres”, ou de “Doce de Coco”. Os 5 Ws da notícia não podem explicar por que estou até agora sob o impacto do que ouvi no último domingo. Murmurando, Naquele tempo, Vibrações, Um a Zero, Flamengo, vontade tenho de escrever somente com nomes de choros, porque

No bandolim há um homem, um músico negro de 84 anos, de apelido Chocho, que me fez dizer: “se Deus existe, quando eu tiver 84 anos, eu quero estar como seu Chocho”. E não disse nem que gostaria de ser como seu Chocho, porque não se pode abusar da infinita misericórdia divina. Chocho toca bandolim, violão, cavaquinho, compõe, e sorri, quando um acorde mais feliz o acompanha. O riso dele é tão bom quanto a sua genialidade. Chocho gargalha, quando uma mulher o beija, na face. “Tenho mais de 100 composições”, ele me diz, “mas tenho que contar uma por uma, pra ter certeza”. Ao redor dele tocam Josué no violão, Geraldo no canto e no cavaquinho, Ronaldo no surdo, Tozinho no cavaquinho. Na tarde em que me encontro, chegam músicos mais jovens, como Rogério na flauta, e mais Vlaudemir, no clarinete.

Atenção para este nome: Vlaudemir. É um novo Felinho. Ele incendeia o público quando toca Na Glória, e de tal maneira que é como se ouvíssemos a composição pela primeira vez. O que para nós é graça, para ele é dedicação plena, trabalho no fogo, pois que fica rubro, do pescoço ao rosto. E porque tal ardor lhe dá prazer, emenda com Brasileirinho, para mais vermelho ficar. Respira, agradece os aplausos, e ataca com “Saxofone, por que choras?”. Se eu pudesse traduzir em palavras o que ele faz com o clarinete, eu diria que ele alterna graves, gravíssimo, agudos, agudíssimos no choro. Em um mesmo clarinete parecem tocar dois músicos, como se fossem dois encarnados em um só Vlaudemir. Então anotei no meu surrado caderninho, com os olhos rasos d’água: esse virtuosismo tem um nome, FELICIDADE.

Mal refeito do abalo, eis que a trupe, os músicos de corda atacam em conjunto Naquele Tempo. Não sei, desse jeito este ateu que lhes fala ainda vai acreditar que existe Deus no céu. Naquele Tempo tocado por Chocho, Josué, Geraldo, Tozinho, para me expressar em português educado, é uma cópula coletiva. Quando entram os violões e o bandolim ferindo as cordas, dentro de mim acende-se a certeza de que esses devassos fazem um assalto coletivo ao amor. Novos hunos amorosos, eles exibem a mais funda alegria de tocar. De tocar nas cordas e em toda a gente. São e somos todos tomados por sua alegria. Alegria de suas conquistas, que eles dividem, multiplicam, somam. O acompanhamento das cordas por vezes é tão bom, que deixa de ser “acompanhamento”. Se essas cordas acompanham, então todos entramos em uma festa acompanhados por Chaplin. Quero dizer, esse acompanhamento jamais será coadjuvante. Os músicos não competem entre si, eles se completam assim como os braços acompanham as pernas, o peito, o rosto, o coração.

Em resumo, amigos, esta é a notícia: no Quintal do Cosme eu vi o amor coletivo. E para minha alegria aprendi que um amor assim não é promíscuo.

(*) Urariano Mota é pernambucano. Escritor, jornalista, publicou o romance Os Corações Futuristas, cuja paisagem é a ditadura Médici.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Entrar na pele do outro, por Risomar Fasanaro

Risomar Fasanaro (*)



Minha amiga Dina me envia uma linda mensagem em que declara que precisa ler para sentir que “tudo parece inteiro”. Diz que precisa “entrar na vida do outro, nas palavras do outro, viver com e pelo outro, distanciar-se de si mesma, da sua trajetória (sempre inacabada), seguir o caminho do outro...”.

Mergulho em suas palavras e me pergunto: será que a maioria das pessoas não é assim? Não sei se mais feliz, mas acho maravilhoso embrenhar-me nas matas com Riobaldo e Diadorim; quando sinto a terra do sertão mineiro, ouço a conversa dos dois, percebo a tentativa inútil de esconder o amor que um sente pelo outro. Como sou feliz quando sinto o cheiro do mato, o roçar dos galhos nos meus braços, ouço o canto dos pássaros, vivo a paixão que se enreda nas entrelinhas dos diálogos, quando me detenho no olhar de Riobaldo pousado em Diadorim, e sinto as emoções que eles sentem.

Faço isso com tamanha verdade, que lendo também não sou mais eu. Quantas vezes, de salto alto sou Sinhá Vitória, tropeçando, sem andar direito nessa cidade grande... Quantas vezes não me oprime o peito à espera da chuva, à minha impotência diante da ausência de caminhos. Busca tão difícil quanto a dela diante da seca?

E quantas vezes sou Macabéa, um dinossauro na Avenida Paulista, chegando do Recife com aquela pureza, aquela ingenuidade, aquele desarmamento diante da vida. Frequentemente Precisando tomar um analgésico, para ver se diminui a dor de viver.

É... viver é difícil, talvez por isso a gente se refugie na pele do outro, ainda que esse outro muitas vezes sofra tanto ou mais do que nós...

Macabéa, por exemplo, me comove até as lágrimas. Quando releio “A Hora da Estrela” sinto vontade de sentar em um banco de alguma praça e colocá-la no colo, de embalar Macabéa, cantando “Terezinha” do Chico Buarque, até que ela durma.

Por causa desse mergulho, já tentei três vezes ler “Crime e Castigo” de Dostoievski, “Os Subterrâneos da Liberdade” de Jorge Amado e “Memórias do Cárcere” de Graciliano Ramos. Fico acanhada quando me perguntam o que acho dessas obras. Nada, não acho nada porque nunca consegui passar da página vinte. Isso é grave? Sim, para uma professora de literatura é mais do que grave, é gravíssimo, mas que fazer? Não consigo...

Relembro o susto que tomei no dia em que estava eu “posta em sossego” lendo “Grande Sertão: veredas” de Guimarães Rosa. De repente Diadorim leva um tiro e Riobaldo lhe abre a camisa para tentar salvá-la e vê os seios dela, descobre que Diadorim é uma mulher. Meu susto foi tamanho que quase tive um peripaque, e a tristeza, a dor que senti foi tão grande que poderia compará-la próxima a de Riobaldo.

Parto para a poesia e releio “O Caso do Vestido” de Drummond. Fico revoltada com a mansidão daquela mulher a viver a solidão desamados, a guardar o vestido da amante do marido pendurado atrás da porta como a refazer todos os dias o caminho daquele que a traiu.

Cansada daquela resignação, releio “O Rio” de João Cabral. Quanta seca, quanta fome, quanta miséria. É... parece que a literatura, com poucas exceções, é parente do jornalismo: se faz com notícia ruim. E que contradição: poucas coisas na vida nos proporcionam tamanho prazer.

Nunca tomei LSD, nem cheirei cocaína, mas duvido que alguma droga proporcione o maravilhamento que um bom livro nos traz. Duvido.

(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

domingo, 16 de novembro de 2008

Casos de família, por Urariano Mota

Urariano Mota (*)



Conversavam em um bar. Os amigos possuíam cada vez mais o hábito de conversar assim. Dessa vez conversavam sobre uma sombra que sempre os acompanhou, a família. Não da família em geral, da família em abstrato, mas de suas próprias famílias.

Dizia um narrador:

- É interessante como a família, como se fosse o lugar e a terra da fraternidade, resiste às mais duras experiências.

“É como o socialismo”, pensou um outro, mas nada disse, para evitar o assunto mais amargo. E por isso ouviu a continuação do primeiro narrador:

- A família não é a terra fraterna, de concórdia, onde todos somos humanos.

“Sei, e como sei !”, vontade teve de golpear a mesa o que falava em silêncio. Mas nada fez, a não ser amargar e ouvir.

- A minha irmã se encontra enferma, enferma e bem fraquinha. Ela mora em uma casa simples, que comprei à custa de economias, para que nela terminassem os dias a minha mãe e ela, que vive solteira. Pois bem. Acabo de saber agora que começaram um movimento... começaram: primos, primas, sobrinhos, bandidos em geral. Pois mal. Começaram um movimento para tomar-lhe a casa. Minha mãe tendo falecido, só restaria a minha irmã. Por isso alegam que ela perdeu a lucidez, e por isso eles, os lúcidos, querem fazê-la perder também a casa. Eu sei que de um ponto de vista legal isto não é simples. Mas eu temo o pior: que eles invadam a casa e passem a ditar as regras. E aí, meu amigo, o que fazer? Brigar na justiça, chamar a polícia, para expulsar gente do meu sangue?

“Como se combate uma praga de abutres? Como se luta contra uma praga de voantes? Eles tomam conta da lavoura, destroem tudo como nuvens que roubam o sol”. Assim pensa o que nada fala, e lhe chegam aos ouvidos, como se viessem de uma casa próxima, as discussões encarniçadas, as brigas ferozes, os insultos, as pancadas que saltavam como demônios em sua própria casa. Onde mesmo a terra da fraternidade? Então ele pensava que a sua família era mundiça, forma corrompida, corruptela de imundície, de gente imunda.

Um silêncio constrangido corre a mesa. Isso quer dizer, esse problema não tem solução. Isso quer dizer, para ser mais preciso, eu não vou me envolver com essa cruz, porque, afinal, tenho a minha, que é pesada e ninguém a carregará por mim. Parecem não ver, ou não querem ver, ou não podem ver que o problema de um homem é um problema de todos os humanos. Então procura-se um derivativo, como se a voz de Nat King Cole fosse uma solução, como se Stardust resolvesse o insolúvel, porque podemos todos ter um amargo que se torna suave. Diante de um problema irrespondível, cambiemos para outro problema. Então um segundo à mesa procura retomar o tema em outra frente, como se outro caminho fosse o mesmo, que muito ajudasse a ultrapassar o obstáculo.

- As famílias são felizes até o dia em que todos têm saúde e o mínimo para sobreviver. Eu sempre achei muito bonito que em minha casa, quando havia um só pão, esse pão sobrava, porque cada um deixava o pão para o próximo. Lindo, não é? Então um dia um inimigo me observou, que para isso muito nos são úteis os inimigos, eles vêem com muita argúcia a nossa ferida. Pois bem, ele me disse: “Isso acontece porque os teus filhos e mulher têm alternativa de comida. Se não houvesse nada mais que um pão, eles se matavam”. A única lei é a necessidade.

“Sei, e como sei”, afirma-se o terceiro amigo em silêncio. “A gente se acanalha devagar”. E como nada havia falado até então, fala:

- O remorso é um pecado sem perdão.

- O quê?

- Existem crimes que não prescrevem.

- É claro, é claro...

A conversa avança para outros pontos, para outros portos, para outros casos de família. Mas na sua consciência o silêncio escreve: “Eu confesso que não sabia o que era o amor. Eu não sabia, portanto, o que era a dignidade. Eu era apenas uma boca animal, só e somente uma carência oca, vazia, cachorra”. E então, como um criminoso que não suporta a vergonha de esconder mais o próprio crime, o amigo em silêncio fala:

- Eu já furtei o pão de irmãos menores, que passavam tanta fome quanto eu.

Um silêncio muito pesado toma de assalto a mesa. Até que um deles descobre uma remota salvação.

- Talvez os amigos cumpram aquela terra de fraternidade prometida. Talvez na amizade exista aquela família que nunca encontramos.

- É possível.

E depois, como uma prova de sangue:

- Eu gosto muito de Nat King Cole.

- Eu também.

- Eu também.

(*) Urariano Mota é pernambucano. Escritor, jornalista, publicou o romance Os Corações Futuristas, cuja paisagem é a ditadura Médici.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Ponto final, por Gustavo do Carmo

Gustavo do Carmo (*)



(Conto)

Na volta para casa decidi pegar o ônibus no ponto final. O abrigo estava lotado. Não tinha lugar para me sentar. Estava morrendo de cansaço. Não quis esperar em pé. Estava muito quente. Mesmo com o sol assando o meu couro cabeludo, preferi andar. Parado ele incide mais sobre a minha cabeça. Andando, pelo menos, vou uniformizando a fritura dos meus miolos.

No ponto final, além de poder ficar debaixo de uma marquise, poderia pegar o ônibus vazio, o que não aconteceria se eu pegasse de onde eu estava. Até a última parada ainda havia mais três pontos no caminho.

Inicio a minha jornada de vinte quilômetros rumo ao ponto final. Já conheço esse trajeto. Aliás, acho que nem chega a ter vinte quilômetros. Talvez cinco. O calor e o cansaço já bagunçam o meu raciocínio. As minhas contas.

Quando acabo de atravessar a primeira esquina, passa o ônibus que me leva de volta para casa. Passa direto, em alta velocidade. Sigo o meu caminho.

Passo por uma lanchonete. Pessoas comem sem pressa, como se vivessem ali. Eu também poderia parar para comer ou beber uma água de coco. Mas estava com pressa. Queria chegar logo em casa e me livrar daquele calor na minha cabeça.

Na segunda esquina vejo uma criança aparentando uns oito anos. Fazia manha. Chorava e esperneava. Provavelmente queria algum brinquedo. A mãe, impaciente, esbravejava:

— SE VOCÊ NÃO CALAR ESSA BOCA, EU TE DOU UMA SURRA!!!!

Pensei em parar em um abrigo próximo a cena. Gostaria de conferir se a mãe cumpriria a promessa. Muita gente torcia para isso. Algumas senhoras tentavam demovê-la da idéia. Se a mãe bateu ou não na criança? Não sei. Segui em frente.

Logo vi a loja de brinquedos que foi o pivô do escândalo da criança. Os funcionários ainda observavam na porta, atônitos. Poderia parar para perguntar-lhes o que houve. Mas isso não era da minha conta. Segui.

A partir da terceira esquina, avistei outro ônibus da minha linha. Acabei voltando para o ponto próximo de onde a mãe ameaçava bater na criança. Não havia ninguém no abrigo além da mulher e do menino que chorava. Parecia mais calmo. Nem sei se tinha levado a tal surra ou não. Para mim não importava. O ônibus que eu precisava chegou. Mas não parou. Eu estava no ponto errado. Continuei o meu caminho.

Repeti a passagem pela loja de brinquedos e a terceira esquina, onde eu tinha avistado aquele ônibus que me fez voltar. Continuei o caminho.

Na frente de um banco vejo um mendigo abaixar as calças e, com a apoteose apontada para quem quisesse olhar, fazia o que os políticos fazem com a nossa cidade, o nosso estado. Nosso país.

Mais pra frente, um vendedor de relógios abria o seu casaco e me oferecia as suas mercadorias, que brilhavam com a luz do sol. Eu nem dei importância. Também não reparei que ele estava nu. A mocinha de trás percebeu. Deu um grito e chamou a polícia aos berros de TARADO!! O policial militar desceu o cassetete no ambulante maluco. Já sem o meu testemunho. Eu estava longe.

Olho para outra calçada e vejo um turista fotografar um mendigo. É por isso que o Brasil não vai pra frente. As nossas mazelas são glamurizadas. Me deu vontade de atravessar a rua e mostrar para o turista a verdadeira maravilhas do Rio de Janeiro que estavam na rua paralela: a praia. Fiquei na minha. Segui o meu caminho.

Duas esquinas depois eu vi uma multidão cercando alguém ou alguma coisa. Dando mais alguns passos, deu para ver um homem caído no chão. O sangue se empoçava e escorria pelo asfalto quente. Nem quis saber se estava morto ou não. Continuei andando.

Já estava a umas três esquinas do ponto final quando avisto outro ônibus parado no semáforo logo no final da calçada. Atravesso rapidamente com o sinal aberto. Quase sou atropelado. Não dá tempo. O semáforo abriu e o ônibus seguiu o seu caminho. E eu o meu.

Passo por uma senhora com o rosto ensangüentado, chorando, dizendo para policiais que foi assaltada. Na esquina seguinte, ouço tiros. Parece ser um assalto. Fico com medo. Paro numa lanchonete e compro um refrigerante. Com a cara e a coragem, sigo em frente. Ando a passos rápidos. Apesar do meu cansaço. Dois ladrões quase me empurram e entram na rua transversal. Os policiais, também. Era um assalto no supermercado do outro lado da rua.

Consigo fugir das balas perdidas. Consigo chegar ao ponto final. Não consegui pegar o ônibus que estava parado, me esperando. Algo pesado caiu sobre mim. Pesado como uma marquise.

(*) Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Preparando o terreno, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



- Alô, amor?
- Oi meu bem!
- Podes falar?
- Posso. Fala...
- Estou te ligando para dizer... Para dizer que estou com saudade!
- Também estou, amor! Eu sei que tenho trabalhado muito nestes últimos meses e não tenho te dado a devida atenção!
- Pois é... Tu vais vir cedo para casa?
- Hoje, por incrível que pareça, irei sim! Daqui a pouco. Por quê?
- Estava pensado em fazermos uma noite especial. Uma noite romântica. O que achas?
- Ótima idéia! Quer ir a qual restaurante? Depois a um...
- Não! Eu mesma vou preparar a nossa comidinha. Na nossa casinha... Vou fazer o seu prato predileto.
- Sei! Não quer sair mesmo? Olha lá...
- Não mesmo! Vou comprar o teu vinho preferido...
- Que beleza! Mas não vai dar muito trabalho, Eduarda?
- Trabalho nenhum, meu amor! Por ti eu faço qualquer coisa.
- Que bom! Nos falamos depois então...
- Não! Quer dizer sim! Mas deixa eu te dizer mais uma coisa antes...
- Fala.
- Acho que aquele lingerie que encomendei, do catálogo que te mostrei outro dia, chega hoje...
- Uuuh... Já vi que o meu benzinho está quente hoje.
- Isso mesmo! Como diz a música: pode vir quente que estou fervendo!
- Ah ah ah! Sua safadinha! Cheia de más intenções.
- Ou melhor, boas-intenções, meu amor!
- É verdade!
- E tem mais...
- Tem mais é?
- Sim! Hoje, vou fazer aquilo que tanto me pedias.
- Oba! Até que enfim cedes aos meus apelos. Essa noite vai ser ótima! Já estou louco para ir pra casa...
- Calma, seu assanhado!
- Meu bem, preciso desligar. Estão me chamando para uma reunião.
- Tudo bem, meu amor! Mas só deixa eu te falar uma última coisa...
- Fala! Sou todos ouvidos...
- É que estou com um probleminha...
- O que foi meu bem? Qual o problema? Podes falar. Ah! Antes que eu esqueça, tu podes passar aqui na empresa e me pegar às 18h?
- Pois é, meu amor! Justamente esse é o probleminha que eu tinha para te falar... É que... É que... Acabei de bater com o nosso carro! Pronto! Falei... Estou bem, não te preocupes, mas o carro... Mas o carro amassou um pouquinho...
- EDUARDA!

(*) Jornalista e cronista

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Festa surpresa, por Celamar Maione

Celamar Maione (*)



Sexta-feira, sete da manhã. Marielza acordou Salustiano com um beijo festivo.
- Parabéns pra você, nesta data querida!
- E eu lá tenho motivo para comemorar alguma coisa?
- Nossa, homem, que baixo astral! Hoje é seu aniversário! Toma, abre o presente.
- Cueca nova!
- Gostou?
- É uma coisa que a gente sempre precisa, né?

Deu um sorriso apertado, saiu da cama e foi tomar banho para ir trabalhar. Tentando agradar o marido, Marielza caprichou no café. Salustiano saiu para a repartição mais animado. Em seguida, Marielza se arrumou e foi para o escritório. Antes, tocou a campanhia da vizinha e amiga Rosiele.
- Tudo certo para logo mais?
- Certíssimo! Fica tranqüila.
- Então vou deixar a chave lá de casa com você.
- Deixa sim. Eu adianto os preparativos. Bom trabalho.

Pegou o ônibus cantarolando. Trabalhou de bom-humor. Ás cinco em ponto bateu o cartão e foi pra casa. Encontrou Rosiele montando os arranjos e enfeitando a sala.
- Tá conseguindo encontrar tudo?
- Só tive dificuldade para achar os guardanapos, mas já estão na mesa.
- E o bolo?
- Em cima da geladeira.

Empolgadas, colocaram as cervejas e os refrigerantes no freezer. Montaram uma mesa com o bolo e os doces e deixaram os salgadinhos prontos para serem aquecidos no microondas. Às sete, em ponto, a mãe de Salustiano tocou a campanhia :
- Nossa, tô orgulhosa! Meu filho merece tudo isso?
- Isso e muito mais. A senhora sabe que amo seu filho.

Logo chegaram os irmãos, as cunhadas e os sobrinhos do aniversariante. Oito da noite, quando ele colocou a chave na porta, apagaram as luzes e fizeram silêncio. Assim que ele entrou, iluminaram a casa toda e cantaram parabéns. Salustiano empalideceu. Nos olhos, uma sombra de alegria e outra de preocupação. Marielza foi a primeira a abraçá-lo. Entre surpreso e preocupado falou baixinho no ouvido da esposa:
-Depois você vai me explicar que loucura é essa.

Ela deu uma risadinha e tentou disfarçar o constrangimento. Em seguida, a família rodeou Salustiano. Queiroz, o irmão mais velho, deu um tapa na barriga e gritou:
- E aí cunhadinha, sai ou não sai a loura gelada?

Rosiele ajudava Marielza a servir os convidados. A sogra, com um sorriso de mostar as gengivas, jogava com os pés, um salgadinho para debaixo do sofá e comentava, para disfarçar:
- Que vizinha maravilhosa é a Rosiele!

A família conversava animada enquanto mastigava com avidez. Só o aniversariante, em meio à alegria, demonstrava um estranho abatimento. Queiroz foi quem o tirou da prostração:
- E aí, Salu, desce ou não desce outra loira gelada?

Ensimesmado, Salustiano entrou na cozinha e encontrou Marielza e Rosiele cochichando. Pediu licença à vizinha e ficou a sós com a esposa. Levou-a para um canto da cozinha e desabafou o que carregava entalado na garganta.
- Você tá maluca de dar essa festa?! Nós estamos afundados em dívidas, devendo a banco e você me gasta dinheiro com festinha de aniversário?
- Deixa de ser mal-agradecido. Não está gostando?
- Como é que eu vou gostar sabendo que terei que pagar pelo seu delírio? Você quer me arruinar? Como a gente vai pagar isso?
- Não se preocupe. Deixa comigo.Já acertei tudo. Você não vai gastar nada.
- Você vendeu alguma coisa? Roubou? Sei lá. Fez alguma merda?
- Nada disso. Depois eu falo. Curte a festa.
- Não consigo. Minha cabeça está explodindo.
- Já disse, curte a festa, depois conversamos.

Queiroz entrou na cozinha gritando, interrompendo as lamúrias do irmão:
- Sai ou não sai mais uma gelada? Que festão hein? Depois diz que tá no fundo do poço!
Meia-noite em ponto, os convidados cantaram os parabéns. Marielza fez questão que a primeira fatia fosse a dela. Saindo pedaço de bolo pelos cantos da boca, Queiroz comentava, com ares de inveja:
- A Carminha nunca fez uma festa surpresa pra mim! Que se dane minha glicose alta. Esse bolo de chocolate tá uma delícia!

Quase uma da madrugada, os convidados se foram, empanzinados. Rosiele piscou para Marielza:
- Amiga, vou ficar para ajudar na limpeza.

Trocaram um sorriso de cumplicidade. Marielza foi até o quarto, pegou uma bolsa, colocou a camisola e chamou o marido.
- Tranca a porta. Precisamos conversar . É importante.

Ele se sentou na beirada da cama, intrigado. Depois de conversarem, Salustiano, colocou a mão na cabeça, enquanto balançava a perna, nervoso:
- Você é maluca, Marielza. E se eu não concordar?
- Se você não concordar, vai ficar mais encalacrado ainda Escolhe.
- Mas isso é coisa que se faça?
- A Rosiele está sem homem há dois anos. Custa dar uma moral pra minha amiga?
- Mas logo eu?! O que é que eu faço agora?
- Até parece que você não sabe. Se vira, queridinho. A festa foi um sucesso.
- E você? Vai pra onde?
- Durmo na casa dela. E olha, seja homem pelo menos pra isso. Não me decepcione.

Marielza foi embora, carregando um pratinho com doces e salgados. Antes de bater a porta, desejou boa sorte, falou para o marido usar a cueca nova e fez uma última recomendação:
- Comportem-se! Nove horas quero voltar pra casa e encontrar meu maridinho inteiro.

Sem escolha, Salustiano tomou um banho para relaxar. Enquanto a água escorria-lhe pelo corpo, pensou: “Até que a Rosiele é gostosinha. A Marielza é muito criativa!”

Foi pra sala só de cueca. Para suavizar o ambiente, colocou um CD de música romântica. Na cozinha, pegou a última garrafa de cerveja. Serviu. Beberam no mesmo copo. Excitado, apagou a luz e esticou as mãos tirando-a para dançar. Apertou-a contra o corpo e beijou-lhe a nuca. Ela correspondeu.

Enquanto Salustiano pagava a dívida, Marielza se deliciava com os doces, ouvindo música. Antes de dormir, suspirou, sonhadora, e sentiu orgulho de si mesma. A madrugada rompia no céu estrelado quando ela adormeceu com um sorriso no rosto.

(*) Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Sina, por Marco Albertim

Sina, por Marco Albertim

Marco Albertim (*)



Nasceu curumi miúdo, o negrinho. A negra Maria Rita mandara abrir as janelas, por causa do calor, para se distrair da dor do parto. João Grosso, o marido, chamara o arruado para a roda de coco. Sua mulher dissera: “Quanto mais gente, melhor... Assim eu não me lembro da dor.” Na casa de alvenaria não coube tanta gente. No terraço da frente, a vizinhança olhava a roda de homens e mulheres na sala, com João Grosso no meio. De fora do círculo, espremendo-se entre as paredes e a roda, o pouco de gente que conseguira entrar.
- Vamos umbigar, meu povo!

O grito de João Grosso, mais alto que o bulício, precipitou-se para o telhado sem forro, escapando entre as brechas, ganhando a rua.

No último quarto da casa, com janela para os fundos, a parteira munira-se de toalha, uma bacia com água morna, duas ajudantes. A negra Maria Rita, nua, nenhum trapo sobre os peitos suados. As negras se acercando, à espreita do curumi.
- Arreda! Arreda! – o calor queimava as entranhas da negra.

O menino pôs a cabeça para fora. A parteira orgulhou-se da experiência. O menino já tinha a metade do corpo fora do ventre. Ninguém dava conta a João Grosso, do progresso do parto. O negro, com a intuição provida nos olhos das mulheres em pé no corredor, gritou para os confins:
- Vamos umbigar, meu povo! – A reverência ao recém-nascido, colérica, rompeu o telhado.

A parteira segurou o curumi, fê-lo chorar. Quando o aproximou do peito da mãe, a negra distinguiu algum movimento nos pés do filho. Maria Rita confundiu com a marcação das três pisadas fortes da roda de coco.

Por ordem e costume de João Grosso, a cantoria durou até as cinco da manhã. Maria Rita dormiu com o filho entre o braço e o peito. O marido estirou-se na espreguiçadeira, ao lado da cama; não quis meter a mão na boa ordem da cama. Ao meio-dia, o menino mamou no peito da mãe. João Grosso tomou banho, almoçou, juntou inhames e batatas no caçoá sobre o lombo do cavalo; foi para a feira, dispôs tudo sob a barraca de madeira, coberta de lona. Recomeçou a rotina do pouco comércio.

Um mês e pouco depois, Maria Rita quebrou o resguardo puxando um balde com água do fundo do poço. Foi rezada pelo velho Fulô. O curandeiro disse que ficaria boa, mas não poderia ter mais filhos. Ela conformou-se, dizendo que não queria ser emprenhada outra vez.

O curumi foi batizado sem a presença de padre. Chamaram-lhe Sebastião. O nome espalhou-se fácil, porque a primeira sílaba perdeu a função na rotina insossa do arruado. O notário se recusou a registrar Bastião. O negrinho, de fralda, coberto com um timão de algodão fino, olhou desconfiado para ele; no regaço da mãe, enfiou a cabeça sob o peito dela. Saiu de lá firmado Sebastião. Foi recebido no arruado com o nome quase cotó, porque houve quem o chamasse Tião.

Cresceu ouvindo batuques, ganzás do coco de sala. Insistia com o pai para fazer a roda do lado de fora, porquanto os gritos das mulheres se soltariam no vácuo do arruado. João Grosso, herdeiro do coco em recinto fechado, dizia que as palmas, o sapateado no cimento da sala, tinham mais sonoridade; batuques e gritos se soltavam pelas brechas das telhas.
- Quando você virar sambador, leve o coco pra beira do rio. Mas não contrarie a vontade do povo. É assim que o costume se mantém.

Com doze anos, Bastião tinha o gosto pelo verso, a estrofe na língua. Nenhum outro ritmo fantasiou-lhe o juízo.

Com dezoito anos, viu o pai subir num coqueiro sem o uso das peias. O velho se valera da experiência, muitos o invejavam. Bastião confortou-se na inveja dos outros, nada dissera ao pai. João Grosso, lá em cima, foi surpreendido por um camaleão.O bicho, do lado de dentro do tronco da palha, tinha o focinho para fora, o rabo solto no outro lado. Com o rabo livre, chicoteou o rosto do negro. João Grosso sentiu o queimor, coçou o rosto com as duas mãos, perdeu o equilíbrio, despencou.

Conservou no rosto o esgar da agonia. O que mais chocou o filho, os amigos, foi o impacto do corpo no chão de barro duro. O baque confundiu-se com o tropel simultâneo do coração de cada um. Bastião chamou-o. Os amigos gritaram.
- Ninguém escapa daquela altura! – disseram.

Bastião acompanhou o enterro segurando o braço da mãe. Não choravam; deram conta da dor com rostos duros, frios. Enquanto o caixão descia à cova funda, repararam no filho o pescoço grosso, tão duro quanto a face. Daí em diante, chamaram-lhe Sebastião Grosso, na ausência, por reverência; e Bastião Grosso, na sua frente, no trato amistoso.

O comércio de inhames, batatas, tomou-lhe todo o tempo durante as semanas. No fim de cada mês, inda que não crendo ser capaz de assumir o lugar do pai no improviso das sambadas, chefiou as rodas de coco. Ao fim de um ano, creu-se com a alma fincada no costume dos negros bantos. Casou-se com 25 anos com a negra Cenira, moradora do Barro Vermelho, ceramista de divindades de umbanda. Veio morar com ele, com a sogra; deu-se bem com Maria Rita. As duas não rivalizavam no culto dos dotes do filho e marido.

Cenira, à vontade, trouxe uma imagem de barro do orixá Ogum. Conforme explicou, seu protetor no ofício de moldar no barro. Instalou-a na sala, num canto da parede, ornada com fitas azuis e verdes. No ombro do orixá, pôs uma espada cor de ouro. De uma ponta a outra, em cima, amarradas aos caibros dos telhados, dispôs fitas azuis, a cor preferida da divindade. A sala, tinha-se a impressão, acolheria uma multidão em festa.

Bastião dera palpites para compor a decoração. Maria Rita, com os olhos cansados, assuntou com folguedos de São João; mas quando se certificou de que se tratava de um altar para celebrar santos da umbanda, calou-se; melhor dizendo, juntou a experiência da idade, grunhiu sem se queixar. Também ela fora, um dia, mãe-de-santo; nunca assuntara com o filho sobre como se fiara com divindades, oferendas.

Em noites de celebração, Bastião se recolhia ao aposento; por fastio, indiferença, nenhuma censura ao atributo da mulher. Maria Rita sentada num banco de madeira trazido da cozinha, acendia o cachimbo que estropiara seus dentes; espiando com pose serena, sem mostrar-se amistosa nem hostil.
- Durma profundamente – dizia Cenira ao marido. Se Bastião ficasse com os sentidos nos transes, interromperia a incorporação dos santos.

Bastião no comércio, Cenira nas molduras; cada um adorando, a seu modo, o que julgavam ser o donativo sem registro no cartório. O casamento seguiu sem tropelia. A velha Maria Rita, assuntando com o cachimbo, deixou escapar um zumbido que o filho ouviu:
- Como foi isso?! – quis saber Bastião.

Ele cruzara a porta da cozinha para os fundos, rumo ao banheiro. A mãe, sentada no banco do lado de fora, segurara no cachimbo para dizer:
- Quem reza pouco, tem alma, tem paciência. Quem reza muito, tem medo, tem blasfêmia.
- A senhora nunca disse isso. Agora tira o cachimbo da boca para pregar susto. O que a senhora tá querendo dizer?

Não era de falar, Maria Rita; mas despregou-se de seu canto, confessou com perfeição de modo os urdumes do pensamento:
- A tua mulher pula feito uma cabra do mato, entorta a boca, grita por santo que nem os santos conhecem. Cuida que ela tem na alma um diabrete...
- Cenira não está prenha, mãe. Quando emprenhar, peço pra ela parar com o encosto.

Se o filho a tivesse provocado, teria dito sem expor-se, com precisão, que fora mãe-de-santo antes do casamento. Numa noite, incorporando o orixá, um homem simulou um transe para aproximar-se dela. Aproximou-se com solavancos nos ombros, nos braços, para roçar-se em Maria Rita. Tudo seria visto, mas legitimado pelo respeito à ferocidade de cada divindade. João Grosso nunca a censurara; às vezes ficava conversando do lado de fora; outras, juntava-se ao povo crente do lado de dentro. Percebeu, ele, os propósitos do falso médium. Sem nada dizer, puxou-o pela camisa, empurrou-o para fora até a rua. O estranho recuperou o prumo no primeiro empuxão. Não reagira de pronto, para fazer uso do último simulacro de transe. João Grosso enfureceu-se, empurrou-o com mais violência. Derribado na frente de todos, o homem tirou da cintura, do lado de trás da calça, uma faca quicé. João tomou-a, furou-lhe a barriga para matá-lo. Toda a lâmina da faca entrou, mas não cortou nenhum órgão dentro; passou rente ao fígado, espirrando sangue depois do próprio João retirá-la. O homem empapou-se de sangue, não morreu. João Grosso foi levado por dois soldados, sem resistência, para a cadeia. Ao chefe de polícia, não omitiu o propósito de matar o homem que se fizera de médium para se aproveitar da moça que seria sua mulher. O chefe de polícia acreditou, deixou-o preso por um mês; depois soltou-o sem abrir inquérito.

Bastião emprenhou Cenira na madrugada de uma segunda-feira, depois da celebração. Quando ela entrou no quarto, sem tirar o suor do rosto, do pescoço e por certo do ventre rijo, a sogra mirou-a sem tirar o cachimbo da boca. Maria Rita ocultava-se no cheiro do fumo, nos anéis de fumaça em volta do rosto. “Vai emprenhar com encosto e tudo”, previu a velha.

Um mês depois, o mênstruo não veio. Ela disse ao marido. À noite pulou feito um bode, agradecendo a Ogum, que a instigara para o sêmen no período fértil.
- Quando a barriga inchar – advertiu-a o marido -, você vai interromper a macumba. O menino que tá na sua barriga não sabe o que é xangô. Ele só pode escolher depois de crescido, adulto.

Cenira não disse sim nem não, sorriu submissa, com algum deboche entre os dentes. A barriga cresceu, dando conta de um curumi inquieto. Ela suspendeu as celebrações. Como não renunciara ao desassossego das ancas, seguiu Bastião nas toadas do coco. Sentava-se, mexendo com a cabeça, os ombros, as pernas. Não perdeu a impudicícia do andar; sem malícia, mas não perdeu. Alisava a barriga com gosto, apreciando a própria saúde, a do filho que, por certo, nasceria mirrado; mas seria troncudo como o pai.

Atraída pelo convite às umbigadas, entrou na roda do coco; segurava na mão de um homem ou de uma mulher, para fechar o círculo. À ordem de umbigar, soltava-se, dando três pisadas fortes para um lado e para o outro. Bastião tinha os sentidos nos versos e na mulher. Preocupava-se pouco, porque o ruído do ganzá não acudia os orixás; mas por estar seguido de um batuque, picava-o a suspeita de que Cenira pudesse confundir a trilha dos ritmos.

Ela chamou a atenção por mostrar-se prenha, barriga saliente, sem perder o porte, a graça do corpo. O vestido de algodão, fino, transparente, dando conta da calcinha rodeando a cintura larga; dorso de uma montaria de raça. Cenira tinha consciência dos dotes, era dócil, folgazona, colérica. A cólera não surgia com facilidade. Fitando-a nos olhos, distinguia-se acolhimento e hostilidade; conforme o trato, ela abraçava feliz ou... do contrário, às cegas, com raiva. Sebastião Grosso tinha razões para confiar na mulher.

Maria Rita, mais setenta anos, prostrada no banco de madeira, sem dar sinais de cansaço. Puxava ela mesma a caneca do poço para a água de seu banho; não queria ajuda, inda que fosse da nora. Falando só, deixando escapar a fumaça entre o cuspe nos beiços, não se admitia caduca. Não dava trabalho a Cenira, curtira-se na lida da casa enquanto o marido cuidava da roça. Vendo a nora enchendo a tina de madeira, no banheiro, para o banho de Bastião, não via razões para se entregar com desvario à macumba.
- Vote!... – grunhia.

A barriga de Cenira cresceu sem umbigadas na roda de coco; umbigava, inda que no último mês da gravidez, na cama com o marido. Ele coitava sem dó, como se fosse emprenhá-la duas vezes num só coito. Ao contrário de outras mulheres, não se sentia carente ou desprotegida. Por não ter esmorecido, ter puxado muita água da cacimba, teve um parto ligeiro, com agonia mas ligeiro. Fez força, espremeu os olhos. A criança nasceu, ela soprou-se aliviada. Quando o menino chorou, ela chorou feliz, dando-lhe o bico duro do peito.

Bastião soube na feira. Fechou o negócio, foi para casa espiar o primeiro curumi de sua lavra. À noite, a pedido da mulher, fez uma sambada com versos dando boas vindas ao filho. Maria Rita, que pouco sorria, mostrou os cacos de dentes para o primeiro neto. Lembrou-se do marido, não conseguiu chorar, mas curtiu-se na saudade de não tê-lo ali para apreciar o recém-nascido.

Com a lua cheia, os coqueiros balançando, a percussão da dança zunindo nos ouvidos, Bastião sentiu saudades do pai. Olhou em volta, gritou para Cenira ouvir, o vento levar para longe:
- Vamos umbigar, meu povo!

Cenira levantou-se da cama antes da hora, e não quebrou o resguardo. Um mês depois, estava na beira da cacimba puxando água para dar banho no filho. A do marido, ele mesmo a puxava de volta da feira.
- Já sei me cuidar, Cenira. O menino é que não sabe.
- O menino não! Ele tem nome...
- Qual vai ser o nome dele?
- Sebastião. O nome do pai.
- Vão lhe chamar Sebastião Grosso!...
- Não vai ser defeito. O pai se sente defeituoso por isso? Sebastião Grosso é nome de gente.

Quando o menino completou um ano, ela quis comemorar de seu jeito. Organizou um ritual com pompa, e estridência de tambores. A velha Maria Rita, de seu canto, grunhiu:
- Vote!

A festa se deu do lado de fora, para não acordar o filho.

Um homem que há muito não se via, apareceu sem se mostrar de vez; ficou rondando cada rosto, e não viu ninguém que o reconhecesse. Não estava tão velho, embora com estrias nos cantos da boca, dos olhos. A cantoria começou. A divindade foi chamada. Ele foi à venda mais próxima; de uma talagada, bebeu meio copo de cachaça. Curtiu-se de energia, de força; fez isso três vezes. Os olhos incharam, espremendo a vermelhidão; olhou para Cenira, perturbou-se com a sensualidade dos quadris da negra.

À meia-noite os tambores ficaram mudos. Suados, homens e mulheres foram para o terraço da casa. Cenira, Maria Rita e duas mulheres da vizinhança tinham cozinhado buchada de bode. Serviram bebida a quem pedisse. Bastião bebeu; o estranho também, sentindo-se quase familiar com a casa.

O menino não acordou. Cenira, mesmo se entregando à divindade, não conseguira incorporar nenhuma; tinha os sentidos nos batuques, na criança deitada em sua cama. Feliz, a mãe, com as velas acesas, as oferendas nos tachos de barro.

Com o recomeço do rito, a barriga cheia lhes tirara a energia para dar cobro às demandas dos santos. Madrugada alta, o estranho creu-se portador de uma guia; os meneios de Cenira puseram fim ao último resíduo de dúvida. Deixou-se incorporar por seus próprios instintos, pôs-se a sacolejar braços, ombros. Cenira, que tivera um transe breve, recobrou a memória, sentiu-se cansada. Sentou-se, enxugou o rosto na tira de pano azul sobre os ombros. Os tambores se calaram, a percussão foi recolhida. O estranho, contrariado, contrafeito, refez-se; sacudiu os ombros como para tirar de si o encosto, e saiu.

Cansados, com o estômago cheio, Bastião e Cenira não coitaram; faltou-lhes energia.

Maria Rita sonhou com o marido chamando o povo do arruado para umbigar.

O estranho, em casa, dormiu sem restabelecer o equilíbrio dos sentidos.

Bastião, na semana seguinte, juntou a roda de coco para sua homenagem ao primeiro ano de vida do filho. A mulher aplaudiu-o, apertou o filho no regaço.

O estranho apareceu, juntou-se aos homens, riu com eles. Entornou o copo de cachaça três vezes, creu-se mais varão que os outros.

Bastião gritou o primeiro verso:
Tem três coisas na vida
Que o homem não deve fazer
Comprar terra em questão
Fazer negócio sem ver
Casar com mulher falada
Vai ser corno até morrer

O estranho aprovou, crendo-se tão honrado quanto o fado que inspirara o verso. Entrou na roda, apreciando com olhos dissimulados as ancas de Cenira. Ficou do lado dela, urdindo umbigar-lhe com modos inocentes; umbigou-a. Ela sentiu; nem quando estava prenha alguém se aproximara tanto de sua barriga. Olhou para ele desconfiada, distinguiu o cinismo; votou-lhe, dali em diante, um ódio visceral. Bastião vira tudo, espreitando a reação da mulher; muniu-se do mesmo ódio nos olhos de Cenira. Aproximou-se do estranho, empurrou-o para fora da roda. Bêbado, o homem cambaleou, caiu; puxou do bolso de trás a quicé. Bastião tomou-a. A camisa do estranho abriu-se. Bastião viu uma cicatriz acima do cinturão; no mesmo local, enfiou a quicé.

A velha Maria Rita viu...

(*) Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

domingo, 26 de outubro de 2008

Pais e filhos, o conflito, por Urariano Mota

Urariano Mota (*)



“Travessias singulares – Pais e Filhos” é um livro sobre o qual os grandes jornais ainda não falaram. Mais um livro no silêncio, para todas as redações, poderia ser dito. É para romper essa paz dos cemitérios que alinhavo aqui algumas linhas.

“Travessias Singulares – Pais e Filhos” é uma antologia que reúne escritores grandes, magníficos, e, dói-me dizê-lo, pequenos. De Machado de Assis a J. J. Veiga, passando por Moacyr Scliar, Carlos Heitor Cony, Antonio Torres, Wander Piroli, Silviano Santiago, Raimundo Carrero. Todos unidos pelo tema da relação entre pai e filho, de norte a sul do Brasil, do século XIX ao XXI. Essa é uma relação que interessa a todos os brasileiros, de pais que faltamos a um companheirismo, até os filhos que não guardam com os seus algum amor. Um terreno de conflito, mágoa e afeto, já se vê. Nem precisamos associar o livro a Édipo, o Rei, que matou o rival para dormir com a mãe, nem precisamos lembrar aquela turbulência de Os Irmão Karamazov. Bastaria a referência do eterno Kafka, em Carta ao Pai.

Não tínhamos no Brasil até aqui algo sequer parecido. Não por falta de conflito, ternura ou guerra nessa relação, é claro. Não por falta de escritores que aqui e ali não se furtaram a essa coisa tão íntima quanto a relação com o útero materno. Uma relação-correspondência que nem sempre chega ao destinatário, fundamental para a definição da identidade, do caráter que somos. Fundamental até na sua falta. Lembro que na entrevista com Ubirajara, o sem-teto que virou funcionário do Banco do Brasil, ele chegou a dizer que a falta do pai, que o rejeitara, lhe doía mais que a fome.

Nesse livro agora vindo à luz participei de duas pequeníssimas maneiras. Na primeira delas, quando localizei o escritor Renard Perez, que muita gente tomava como perdido, desaparecido ou morto. Aos 80 anos, no Rio de Janeiro, Renard só se comunicava com o mundo pelo telefone, que nem sempre atendia. Estava sozinho, imagino que em depressão, porque havia perdido a esposa há poucos meses. Quando lhe pedi algum contato, algum email de amigo, ele me respondeu, “eu não tenho amigos”. Localizei-o com muita felicidade, em razão da sorte e da alegria que senti na sua voz, ao me dizer que há muito não ouvia uma voz nordestina. Renard é natural de Macaíba, no Rio Grande do Norte. Para saber o valor da sua força, recomendo a leitura do seu conto, presente nessa antologia, “A morte do pai”. É um soco, uma lição e uma denúncia.

Na segunda maneira, participo do livro com o texto “A casa de meu pai”. É o relato de um certo pai, brutal, brutalizado e brutalizante, cuja máxima pedagógica era “bato num filho como quem bate num homem”. Os poucos leitores agora compreendem por que disse lá no começo que escritores pequenos também estão nessa antologia. Entre esses não se encontram Domingos Pellegrini, Aluísio de Azevedo, nem o grande e até há pouco esquecido Renard Perez.

O feliz editor é Rosel Bonfim, da Casarão do Verbo. O livro está nas boas casas do ramo. Mas se em algum lugar do Brasil ou do exterior não chegar, escrevam para o email do editor, roselbonfim@hotmail.com . Se um livro salva um escritor, do nível de Renard Perez, deve ser lido e saudado. Se uma antologia nos fala dessa relação de guerra e paz, merece a nossa estima. Para nos lembrar que um dia fomos filhos, e seria bom que não repetíssemos os pais que recebemos. Por uma questão de consciência. Deus ou a humanidade condenam.

(*) Urariano Mota é pernambucano. Escritor, jornalista, publicou o romance Os Corações Futuristas, cuja paisagem é a ditadura Médici.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Julgamento da consciência, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



- Decidiram por quatro votos a três...

A juíza proferia a sentença e um filme autobiográfico transcorreu nos pensamentos do réu Valdomiro. Lembrou-se como conhecera a ex-esposa, dos tempos de namoro, do nascimento do filho, das constantes brigas, do dia em que ela o abandonou, quando a viu com o namorado pela primeira vez...

-... Os jurados do tribunal do júri da Comarca...

Inevitavelmente o dia em que decidira matar a ex-esposa apareceu no seu longa-metragem. As crises de ciúmes não o deixavam mais em paz...

-... Nos autos do processo 27179...

De soslaio fitou o assassino da sua ex-mulher, recordou como o encontrou e acertou tal homicídio. O Vergílio, um viciado em drogas, que por algumas pedras de crack realizou a execução. Valdomiro concedeu todos os detalhes necessários. O crime foi cometido no crepúsculo de uma sexta-feira, no estacionamento do shopping. Vergílio fora preso em flagrante, pois um dos seguranças do local vira o delito e o interceptara.

-... Pelo crime de homicídio, o réu Valdomiro...

Virgílio dissera no julgamento que matara a mando de Valdomiro. Instruído pelo Advogado, Valdomiro negou veementemente Há casos em que não importa quem tem a razão, ou verdade, e sim, o melhor Advogado.

-... Foi considerado inocente.

O filho do Valdomiro lia a carta que narrava o julgamento do pai, prescrita por ele, lágrimas escorreram. Não se comunicavam há trinta anos, desde o julgamento, quando foi morar com a avó materna. Valdomiro depois de inocentado viveu esse tempo todo recluso em casa, no interior do estado, como um condenado em regime domiciliar. Morreu sentado no sofá. A carta foi o último descarrego de consciência, precisava explicar-se ao filho. Finalizou a carta dizendo: A liberdade é uma dádiva dos homens de consciência tranqüila...

(*) Jornalista e cronista

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A prova de amor, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



- Desculpa, amor! Por favor?
- Não.
- Por favor: aceita essas rosas pelos menos. Elas são o símbolo do meu amor...
- Sei.
- Estou arrependido pelo que fiz...
- Que não tivesse feito, então.
- Aceita, por favor?
- Tentando me comprar, Luiz Henrique?
- Não! Pô... Tu também complicas quando quer complicar... O que fiz nem foi tão grave assim...
- Nãããããoo! Tu não achas grave, Luiz Henrique? Eu fico imaginando: se tu olhaste para aquela vagabunda estando comigo... O que não fazes quando estás sozinho, hein?
- Ai ai ai, Vitória! Eu te disse: eu só olhei porque me chamou atenção uma mulher estar de mini-saia em um dia friozinho...
- Tu achas que sou eu boba? Então, foi o friozinho e depois as coxinhas dela, a bunda... Faça-me o favor!
- Meu Deus! O que eu posso fazer para provar o meu amor? Que gosto realmente de ti? Para ser perdoado?
- Não sei. Não sei se tem perdão...
- Mulher quando quer complicar, vou te contar uma coisa...
- O que disseste?
- Nada não... Me diz: o que tenho que fazer para provar que é de ti que eu gosto?
- E será que gostas mesmo? Será que existe amor da tua parte?
- Já sei! Uma serenata! Eu canto pra ti:

Às vezes, no silêncio da noite
Eu fico imaginando nós dois
Eu fico ali sonhando acordado, juntando
O antes, o agora e o depois
Por que você me deixa tão solto?
Por que você não cola em mim?
Tô me sentindo muito sozinho!

- Chega Luiz Henrique! Quantas vezes vou precisar dizer que essa música me deprime?
- Ai ai ai, Vitória! Um poema, então? O Amor, do Fernando Pessoa. Lindo! Começa assim:

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer...

- Luiz Henrique, chega! A tua memória é fraca mesmo, hein? Ou tu não prestas atenção nas coisas que digo. Semana passada mesmo eu te falei que não gosto de poesia...
- Pô Vitória! Que droga mesmo! Nada serve. Não sei mais o que fazer para demonstrar que EU TE AMO!
- Sigh! ai-ai!
- O que foi? Por que esse suspiro?
- Repete, por favor?
- Repete o quê?
- A última parte “o eu te amo”.
- Vitória: eu te amo! Isso?
- Ai ai... Eu te amo! Eu te amo... Que lindo! Como é bom escutar isso. Ai amor... Fazia tempo que tu não demonstravas que me amava deste jeito...
- É?
- Ãran!
- Está bem então...
- Está perdoado, meu amor! Vem cá me dar um beijinho, vem...

(*) Jornalista e cronista

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A duzentos por hora rumo ao céu!, por Seu Pedro

Seu Pedro (*)



As montanhas verdes eram vistas azuis, tal a distância que delas estávamos. O carro corria a duzentos por hora, mas as curvas não eram das estradas de Santos, nem a música do momento era uma canção de Roberto Carlos.

Inconsciente, ou inconseqüente, o motorista não freava e os pneus emitiam um som, de prenúncio de morte. Só a sorte faria os cinco, ele e mais quatro, escaparem de um grave acidente. Talvez a sorte fosse pouco. Seria necessário um milagre, pois o desafio às leis da gravidade era também um desafio a Deus.

O som era alto no interior do veículo, com ar-condicionado ligado, conseqüentemente, com os vidros das janelas fechados. E isto impedia que ouvissem as buzinadas dos motoristas prudentes, que no cruzar, na estrada se assustavam com aquele veículo veloz, e dirigido por um jovem. Seria um condutor drogado? Um carro roubado?

E vai se aproximando o destino final. Faltariam apenas cem quilômetros para aquela loucura na pista. As autoridades já haviam sido avisadas e ficaram à espera no quilometro “zero” da contagem decrescente. E lá estavam policiais rodoviários, comissários de menores e conselheiros tutelares, pois foram comunicados se tratar de um grupo de menores rebeldes, e já havia sido confirmada a versão do carro roubado.

Em velocidade de duzentos quilômetros por hora, em direção à festa de carnaval no litoral de sol dourado, cem quilômetros de uma estrada teriam que ser percorridos em pouco mais de meia hora. Uma espera angustiante, agora partilhada pelos pais, com angustiantes perguntas ao telefone do Posto Rodoviário.

O relógio já marcava uma hora e meia de espera, quando então as buscas começaram. Em uma curva, não muito longe, não encontraram vidas: cinco corpos no asfalto, revólveres que eram de brinquedo e uniformes escolares. Os primeiros que chegaram ainda viram uma nuvem de fumaça vinda do carro incendiado subindo ao céu, talvez a duzentos por hora. Só Deus dirá se eram anjos ou diabinhos!

(*) Seu Pedro é o jornalista Pedro Diedrichs, repórter do jornal Vanguarda, Guanambi, Bahia.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Homens complicados, por Ruth Barros

Ruth Barros (*)



Contos da Mula Manca

Vocês sabem aqueles caras que parecem o David Beckam, senão fisicamente, pelo menos em estilo, os chamados metrossexuais? A Mula Manca (MM) está convencida de que esses caras conseguiram complicar ainda mais o já conturbado universo masculino, com reflexos profundos no feminino. Metrossexual, como já foi divulgado por todas as revistas e jornalistas metidos a moderninhos e a entender de tudo, são aqueles sujeitos que têm hábitos mais próximos das peruas e dos gays. Mas diferentemente dessas duas raças, gostam é de mulher – e muito.

O que seria uma solução para as mulheres passa a ser um problema quando o sujeito em questão dispõe, por exemplo, de seis portas de guarda-roupa. Uma fofa de minhas relações arrumou recentemente um cara que tem exatamente isso, seis portas de armário lotadas. “Eu me sinto uma pobre de Jó com minhas duas portinhas”, diz a básica. “Sei que sou elegante e uma das coisas que ele mais gosta em mim é isso, é aquele cara dos detalhes, que sabe apreciar qualquer up grade que você dê, valoriza isso e é ótimo se ver olhada com cuidado, saber que ele está prestando atenção. Mas a relação de quantidade virou de ponta a cabeça, ele tem um guarda-roupa de perua, numericamente falando enquanto eu pareço um homem de negócios, daqueles que não têm muito tempo a perder com frescura”.

Guarda-roupa extenso não chega a ser exatamente encrenca, a própria fofa reconhece, mas as conseqüências disso são complicadas, como ela mesma explica: “É claro que acabo dando risada ao ver tanta coisa junta, tanta variação sobre o mesmo tema, tipo 15 camisas brancas, 10 blazers pretos e por aí vai. Mas o problema é o tempo gasto em escolher as toilletes, o banho, a ginástica e outras cositas mais. Transar com ele é uma delícia, a gente se dá lindamente bem. O que atrapalha é que ele chega invariavelmente atrasado, ou melhor, já está tão escolado que nem marca horário, mas antes das 11, meia noite, é melhor não contar para nada. Nossas noites acabam sempre começando super-tarde e acabando cedo, pois além de tudo ele é do tipo todo ocupado com negócios, mãe doente, enfim, coisas que não tem como adiar. E o simples banho diário leva em média 70, 80 minutos”.

Solução, se existe, ela desconhece: “Não sei, acho que dá pra segurar a onda. Não acredito em mudanças, não espero por elas, a não ser que venham de mim. Posso torcer para que meus dias comecem a ter mais de 24 horas ou que eu tenha paciência de esperar a cada encontro por uma noiva que se arruma para o casamento. Por enquanto está valendo a pena”.

(*) Maria Ruth de Moraes e Barros, formada em Jornalismo pela UFMG, começou carreira em Paris, em 1983, como correspondente do Estado de Minas, enquanto estudava Literatura Francesa. De volta ao Brasil trabalhou em São Paulo na Folha, no Estado, TV Globo, TV Bandeirantes e Jornal da Tarde. Foi assessora de imprensa do Teatro Municipal e autora da coluna Diário da Perua, publicada pelo Estado de Minas e pela revista Flash, com o pseudônimo de Anabel Serranegra. É autora do livro “Os florais perversos de Madame de Sade” (Editora Rocco).

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Deixo a vida me levar, por Seu Pedro

Seu Pedro (*)



Dizem que de poeta e louco cada um tem um pouco. Acho que desde pequeno, quando não tinha nada de poeta, eu já era louco, no bom sentido é claro! Era uma espécie de “Marcelino Pão e Vinho”, personagem de uma história que poucos hoje conhecem, mas que no meu tempo ainda de criança, o filme lotava sessões e provocava enormes filas às portas dos cinemas. Marcelino era um pequeno órfão que causava milagre.

Quando bebê, foi deixado na porta de um mosteiro e criado, e muito bem cuidado, pelos monges. Mas sentia falta de ter uma mãe. Um dia, encontra um amigo especial, em um sótão proibido, pendurado em uma cruz. Um amigo que retribui a bondade da criança, concedendo-lhe um desejo do fundo de seu coração.

Marcelino deseja ter um amigo para brincar, com a personalidade dele, e o ganhou invisível e habitando a sua mente, que tinha todo o espaço de um jardim, onde brincava só aos olhos humanos, mas a dois aos olhos que vêem através de outros corpos!

Eu e Marcelino podíamos ter nascido em qualquer lugar do mundo, pois na movimentada linha de produção de bebês, não há como determinar a alma de cada criança a nascer. São muitos exemplares e parece que são poucas as cegonhas. Elas têm que viajar com rapidez, vasculhando motéis, terrenos baldios, moitas das flores, quartos de casas pobres e ricas e até o escurinho do cinema, para entregar, para cada par, ou casal, o bebê desejado, ou indesejado. E ela tem que ser tão rápida, que não dê tempo para que a vejam, e passem a acreditar no que estou falando. Ao contrário do que pensam, a cegonha não traz o bebê completo e já chorando pendurado em um lençol. Traz-nos, dele, apenas a alma e a personalidade!

Foi no meu tempo de criança que começaram a estudar cientificamente o autismo, há sessenta anos, que dizem ser uma desordem na qual uma criança jovem não pode desenvolver relações sociais normais, se comporta de modo compulsivo e ritualista. Terei sido, ou sou autista, já que não desenvolvo relações sociais normais? Não vou ao clube pelas manhãs jogar pelada; não saio à noite para sentar em um botequim e sair de lá com bafo de saca-rolha; não compro Playboy; não fumo em restaurantes e em nenhum outro lugar, preferindo gastar meu suado dinheiro em guloseimas para meus filhos; adoro mulheres de todos gênios, tipos, estaturas, raças e profissões, mas só escolhi uma delas para ser a minha boa metade. Sou diferente, não sou convencional!

Poucos são compulsivos, como eu, principalmente quando se trata de meus direitos. Quando falo alto e em bom som, às vezes sou mal-entendido e me dou mal. Mas o que fazer se sou assim, e não abro mão? Sou ritualista, agradeço a Deus a qualquer hora e em qualquer lugar, jogo minhas calças, camisas, meias e cuecas espalhadas pelo chão do quarto, como um ritual, que vai ser difícil de mudar na minha idade. O único local que arrumo é o meu espaço de trabalho, o que o faço ritualmente, de seis em seis meses, ou quando necessito achar um papel perdido entre a montanha de outros que já deveriam ter sido destinados à reciclagem. Não dou bom dia a quem não gosto e vivo a sorrir para os que me são simpáticos. Isto é autismo?

Não só Gabriel, que nasceu em 1993, em Macaé, litoral do Rio de Janeiro, cujo pai lhe presta homenagem em uma página que criou na Internet, pena que desatualizada, Canto de Anjo. Nela ele narra que, aos três anos, após terem recebido, por dádiva de Deus, o Anjo Gabriel, ele percebeu que o filho reagia em não falar, mas só cantar, adotando um comportamento aéreo.

Que nenhum avião Legacy derrube nossos pensamentos e sonhos aéreos, pois melhor é ver a vida pelo alto. E que ninguém nos impeça de cantar ao som das harpas tocadas pelos anjos, ou ao batuque do pandeiro, do ronco da cuíca ou de um dedilhar ao violão. Quer melhor do que cantar? Afinal, como diz Zeca Pagodinho: “E deixa a vida me levar, vida leva eu (...) Sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu...”

(*) Seu Pedro é o jornalista Pedro Diedrichs, editor do jornal Vanguarda, de Guanambi, Bahia.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

A decisão, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



Bernardo acordou com um barulho vindo da garagem de sua casa. Era o ruído resultante do atrito entre o abrir a porta e o chão. O relógio marcava duas horas da madrugada. Fazia frio. Levantou-se cuidadosamente para não despertar a esposa. Colocou o roupão e os chinelos. Caminhou do quarto até a sala, onde abriu, de forma silenciosa, uma fresta na “janelinha” da porta e espiou. A porta da garagem estava semi-aberta. Indagou-se o lógico: “Quem será?”

Espiou por um tempo para ver se enxergava algo. O silêncio perpetuava-se. Então, os barulhos recomeçarem. Agora, era o som das suas ferramentas e outras coisas caindo no chão. O sentimento de raiva foi apoderando-se de Bernardo. “Mas o que fazer?”, perguntou-se, ainda conduzido pela razão. “Chamar a polícia? Até chegarem ao local, quem lá estivesse já haveria de ter partido. Deitar-se novamente e torcer para que nada de muito valor fosse levado? Não! Não iria ter trabalhado a vida inteira para que, em segundos, um vagabundo qualquer roubasse suas coisas para provavelmente trocar por drogas. Ainda mais que, já haviam sumido alguns objetos da sua garagem. Não iria financiar drogado. Não mesmo!”

Irritado, resolveu fazer justiça com as próprias mãos. Resmungando baixinho, voltou ao quarto e pegou sua arma de caça que estava escondida embaixo da cama. Pegou-a com todo o cuidado. Retornou à sala. Fazia tempo que não usava sua arma. Mesmo empoeirada, Bernardo carregou-a e posicionou-se, mirando a garagem, com o cano da arma escorado na base da “janelinha” da porta.

Os barulhos que vinham de dentro da garagem cessaram novamente. O que o fez voltar à razão, apesar da tensa situação. “E agora, o que fazer? Atirar em direção à garagem ou não? Se atirar, quais as conseqüências? Um processo talvez e um corpo entendido no chão caso o tiro fosse perfeito? Valia a pena? E se errasse? Quem sabe atirava para cima para assustar? Não seria pior? Acordar a esposa, os filhos e os vizinhos? Ir até lá e encurralar o ladrão? E se ele estive armado também? Teria agilidade para atirar primeiro?” Esses questionamentos transcorriam vertiginosamente nos pensamentos de Bernardo quando os barulhos recomeçaram. Desta vez, pareciam ser de alguém vomitando.

Os barulhos originados na garagem se confundiram com os latidos de alguns cachorros da rua. Isso só fez Bernardo ficar mais tenso. Precisava decidir-se logo sobre o que fazer. Atirava ou não? Se sim, na garagem ou para cima? Ou se aproximava? Foi então que a porta da garagem foi levemente empurrada para fora.

Bernardo assustou-se com o ato e quase atirou. Um silêncio veio logo a seguir. Gotas de suor escorriam por baixo de suas axilas. Refez-se do susto e posicionou-se para atirar novamente. Ninguém saiu de dentro da garagem, e, apesar da boa abertura da porta, ele não conseguia ver quem lá se encontrava por causa da escuridão.

A porta da garagem foi novamente empurrada, desta vez com mais força. A pouca luminosidade não o deixou ver em um primeiro momento o rosto de quem deixava o recinto. O dedo trêmulo encontrava-se no gatilho da arma. A testa encharcada deixava transparecer o seu nervosismo. Mirou. E agora? O suposto ladrão estava de costas, fechando a porta da garagem. Respirou fundo, e decidiu-se por aguardar e ver quem era. Foi quando faróis de um carro iluminaram.

Bernardo deixou escapar um “Ufa!” E correu para o quarto, para não ser visto com a arma. Era o filho mais velho que acabara de chegar e, novamente, ainda sob efeito de algum alucinógeno.

(*) Jornalista e cronista

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O mar que deixei para trás, por Fábio de Lima

Fábio de Lima (*)



Não agüentei
As ondas do mar que bateram em meu peito
E cai
Não resisti

Mas levantei
Olhei ao redor e fui enfrente
Virei mar
Jamais voltei

Só tive um medo
Quando olhei em direção à praia
Lá na areia
Meu amor estava

Pensei nela
Água salgada verteu de meus olhos
Saudade deixada
Beijo vazio

Horizonte longínquo
Foi aí que passei a navegar em meu próprio barco
Não morri
Só renasci

Meu casamento
Um casal de filhos perdido em algum lugar
Muitas ondas
E o passado

Afundei sem destino
Ainda balbuciei o seu nome
Cai de mim
Para mim de novo

(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Noite dos fantasmas, por Pedro J. Bondaczuk

Pedro J. Bondaczuk (*)



Ouço ao longe sons de passos furtivos,
incertos, trôpegos, ecoando na calçada.
É noite...Noite escura dos fantasmas
dos trânsfugas e solitários,
em que todas minhas saudades
conspiram contra a mental sanidade.

Ao longe, um cão uiva para a lua,
profética lamúria,
lamento instintivo e ancestral.
Um bêbado tangencia o horizonte,
em uma coreografia caótica,
dança incoerente, patético balé.

Na semi-obscuridade do quarto,
mariposas orbitam o poeirento lume,
projetando sombras bailarinas
nas paredes nuas, manchadas de solidão:
vida louca, alma vadia, fugaz ilusão...

A memória resgata a crônica do ontem,
perdida nos meandros do passado;
mortos queridos, amores extintos,
amigos distantes, respeitáveis inimigos.
Conclave imaginário de fantasmas...

Pontas de cigarros erigem pirâmide
desordenada no cinzeiro de vidro
(ou seria de alabastro? ou de cristal?).
Fumaça azulada desenha incerto
itinerário ao redor da suja lâmpada.
Estou só no quarto...("sozinho na América",
diria, dramático, o poeta de Itabira),
nesta noite, modorrenta e triste, dos insones.

(*) Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Eu acostumei, por Pollyanna Letícia

Pollyanna Letícia (*)



Eu acostumei a cheirar as flores do vizinho,
e achar que o seu perfume era como os da vitrine da rua sete.
Mas, os da vitrine eram sublimes...
Eu acostumei a não perder tempo com coisas banais,
e achar que assim eu vou está de bem com o relógio.
Mas, o meu tempo era sempre nublado...
Eu acostumei a dispensar a conversa na janela;
a novela das oito;
o passeio com o meu cachorro.
Mas, o meu dia era sempre o mesmo todos os dia...
Eu acostumei a deixar de presentear a minha esposa;
desgostar de surpresas;
de levar a vida mais a sério.
Mas, a minha situação que estava ficando séria...
Eu acostumei a andar rápido mesmo não estando com pressa,
e achar que o tic-tac não anda...Voa!
Mas, o tempo só voa para aqueles que não sabem que ele não volta...
Eu acostumei a não sorrir para as crianças do parque;
a não desejar um ‘bom dia’ na possibilidade de realmente ser bom;
ao dormir não adormecer também os meus problemas.
Mas, os meus problemas teimavam em fazer parte dos meus sonhos...
Eu acostumei por acostumar,
e achar que os meus costumes me faziam bem.
Mas, hoje sou um mal-acostumado em companhia da solidão, do meu cigarro, das minhas fraquezas...
E eu não sei porque que acabo achando que os tempos podiam ser outros,
Mas, ele se perdeu...
Mas, eu o perdi...
Passou e agora volta com novos ares.

(*) Estudante do 8º período de Comunicação Social da Universidade Federal de Tocantins

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Os caminhos da noite, por Talis Andrade

Talis Andrade (*)



Te ofereço a mão
pelos segredos da casa
os labirintos do corpo

Dos amantes a secreta
ambição de ficar a sós
deslizar pelas sombras
esconder-se nos lençóis

(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).

(*) Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do Diário da Noite, Jornal do Comércio (Recife), Jornal da Semana (Recife) e A República (Natal). Tem 6 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Romance do Emparedado” (Editora Livro Rápido) e outros cinco à espera de edição.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Lã de boa ovelha, por Laís de Castro

Laís de Castro (*)



Quando eu fugi de lá para estudar achei que estivesse livre. Fui embora, escolhi a faculdade de medicina mais distante que conhecia, migrei para o Rio Grande do Sul, imagine você, me bandeei quase para a fronteira da Argentina, danei a falar tu, dançar rancheira e até umas bombachas vesti, fiquei meio veado com elas, nem liguei, era tudo gostoso por lá. Durante um tempo esqueci aquele maldito dia, aquela maldita mulher chorando feito Maria Madalena, em cima do corpo do filho roxo, inchado, cheio de água por dentro e por fora. E aquela irmã gorda feito uma pipa de vinho, silenciosa, segurando a minha mão como quem perdoa o assassino do irmão, desde que ele fique ali, no lugar do morto, como se gente fosse coringa de baralho que pode tomar qualquer lugar e não tem importância nenhuma. A cidadezinha inteira ali, os sinos da igreja tocando a Ave Maria, que no interior a Ave Maria de Gonoud, coitada virou música de cadáver insepulto. E aqueles buquezinhos de flores caipiras apanhadas dos jardins chegando, das mãos de todas as mães da vila. E todos me olhando como se eu fosse o culpado.

Eu só tinha que fugir. Foi o que fiz, na primeira oportunidade.

Depois de uns três anos no Rio Grande do Sul, namorando uma moça faceira, como se diz por lá, deitando com ela em silos e pastos, imaginava que tudo estava perfeito. Tinha conseguido enterrar o passado exatamente cinco anos depois de enterrar meu melhor amigo, após daquele acidente voraz.

Que nada. A história ainda estava por começar. Numa manhã bem azul, andando pela rua, eu jurava estar vendo o falecido, da mesma idade que a minha, bonito, sorrindo para mim, vindo na minha direção, os braços abertos prontos para um abraço fraterno. Horror. Medo. Repulsão, asco, rechaço, pavor. Saí numa disparada tão grande que parecia burro bravo em fim de rodeio. Acho que galopei sem cavalo uns dois quilômetros até a língua sair da boca tão grande como uma como gravata e o coração pular feito bode novo. Caí no chão, então, sentado no meu quarto da república, deitei de bruços e chorei. Chorei uma tempestade, um temporal, uma chuva de verão que foi se tornando mais fina e virou uma garoa intensa.

Naquela tarde me mantive no quarto de piso de tacos, com uma cama e uma escrivaninha além do armário simples de duas portas, como um monge numa cela de convento, instaurando uma diligência interior para, ao mesmo tempo, entender o fato extraordinário daquela tarde e purgar meu pecado não cometido.

Naquela noite não pude visitar a namorada viçosa e com cheiro de flor, fiquei envolto no cobertor, os olhos parados no branco da parede, sentado e abraçado às pernas como se elas pudessem me proteger de um tiro que viria daquele lado. E a maldita parede branca projetava numa tela aquele rosto, que continuava vindo para mim. Tomei um calmante faixa preta, uma paulada na cabeça, ainda bem que estudava medicina e tinha acesso a todo tipo de droga. No dia seguinte acordei atrasado, perdi as primeiras aulas, parecia que um corvo tinha comido os meus olhos de tão fundos que eram.

Na faculdade, inventei uma doença para os colegas, uma ressaca, uma crise hepática, uma enxaqueca insana que me perseguia. Tinha espantado o fantasma. Fui me recuperando devagar, não sem ansiedade e o medo desgraçado de ver a figura de novo. Se o dia amanhecia lindo e o céu azul, não tirava os óculos e não passava naquela esquina dele. Sabe-se lá se o cara resolveu morar por ali... Retomei os passeios noturnos, a namorada, o mate amargo, antes um bom mate amargo do que a vida...

No fim do ano inventei uma desculpa e não fui passar o Natal com os velhos pais, os irmãos, a familiagem toda que ficara na cidadezinha. Inventei um curso de hematologia, depois misturei, falei que era de reumatologia, fiz a maior confusão e não fui. Passei o Natal comendo pato na casa da namorada, que era simples, querida, nascida de família imigrante italiana, olhos azuis como a manhã maldita, mas doces feito pirulito em boca de criança. Afinal, eu estava querendo me casar com ela e me estabelecer por lá, ou atravessar a fronteira e acertar uns trabalhos em pesos, que o peso valia muito mais que o cruzeiro naquela época. Não tinha consciência, ainda, de que ficar ali era a melhor maneira de fugir de um destino que me empurrava de volta para casa, para a minha cidadezinha e do ex-amigo morto, e ia ficando, aconchegado às mantas e cobertores com cheiro de ovelha daquela casa de madeira escura, enfeitada de tapetes rústicos bordados à mão, panelas de ferro, flores vermelhas, cheia de irmãos com rosto branco de maçãs vermelhas como aquelas que mesmo ali se colhia e comia.

Tinha me acostumado ao macarrão pesado da sogra gaúcha, ao sotaque cantado, aos gritos de alegria do sogro, às gargalhadas solenes e ao vinho tinto vigoroso. Como a vida que corria ali parecendo um rio de águas geladas, transparentes, diamante puro.

O primeiro sonho aconteceu mais ou menos uns oito meses depois daquela visão na rua. O cara estava vivo e me chamava, da casa dele, sentado na sala onde seu corpo havia sido velado, o mesmo sorriso branco, a camisa branca, a mão branca, me dizendo vem para cá, você me tirou daqui tem que tomar o meu lugar. Acordei suando como uma chaleira fervente. O segundo sonho veio depois de um mês. Eu andava esquisito e a italianada toda reparava. Era um homem com medo, cabisbaixo, tímido. Os colegas da faculdade começaram a encarnar os médicos que ainda não eram e davam conselhos das mais nobres estirpes. Desde não dormir sem drogas a não dormir sozinho, como simplesmente não dormir. Passar o resto da vida alerta, para não sonhar com aquele moleque, em quem, num momento de irresponsabilidade juvenil, eu tinha dado um caldo. Um caldo eterno. Ele morrera, sei lá se do caldo, do susto, meu melhor amigo.

Nós tínhamos levantado cedo naquela manhã azul. O azul dos olhos da amada, de todas as manhãs do verão nacional, dos meus descaminhos profanos e permanentes.

Era sábado e resolvemos ir nadar num rio que tinha logo ali, a uns três quilômetros, o que, para dois adolescentes de 16 anos, o corpo arrebatado pelo vigor e a bicicleta no portão, era exatamente nada. Vencemos a distância num átimo, mergulhamos nus em pêlo naquela água tépida que o sol aquecia levemente, a vida toda pela frente, a felicidade nas risadas, tudo lindo. O rio passava por baixo da linha do trem, os passageiros nos olhavam, quase sempre, com inveja, suando, de dentro dos vagões de primeira classe com banco de palhinha ou de segunda classe com bancos de madeira crua, a maria-fumaça soltando brasas que restavam da lenha que a impulsionava para todos os lados e queimando a roupa de todos. Ali o rio fazia uma espécie de pequena cachoeira, com as pedras que sobraram da construção da ponte e as águas se abriam numa rotunda mansa e clara. Então continuava, como se não houvesse a interrupção. A gente brincou de jogar pedra, de passar por baixo da perna em mergulho profundo, de pular do ingazeiro e de dar caldo. Foi esse último brinquedo que deu errado. Eu dei uns dez caldos nele e tomei uns dois ou três. E continuei dando, mostrando minha força, ele pedia para eu parar...

O sonho foi ficando cada vez mais sinistro e mais freqüente. Era sempre igual, recorrente, mas às vezes meu velho companheiro aparecia com a mão descarnada me convidando para ir até lá. Outras vezes lhe faltava a tampa da cabeça e, em outras, a camisa estava banhada em sangue, como se a hemorragia do afogamento quisesse se exibir, aquele vermelho vivo desafiando meus saberes da ciência, que sangue não fica vermelho esse tempo todo, mas a gente vê cada coisa...

Eu poderia ficar aqui dias, semanas, descrevendo cada sensação de enjôo, execração, repugnância, susto e temor que senti naqueles meses que se seguiram e que antecipavam minha formatura. Vomitava noites inteiras, emagreci mais de quinze quilos, o italianão começou a achar que eu andava dando e estava era com Aids. Um dia me chamou de lado, tossiu e me deu uns tiros de chumbo por meio de palavras diretas, dizendo que se eu fosse veado era para me mandar da casa dele que ele acertava as contas com a filha. Fiz tudo para que ele acreditasse no que me acontecia, contei mesmo que um sonho perverso me perseguia, que era vítima de um mal-entendido e estava sendo condenado pelo cosmo, mas essa história de cosmo ele não engolia e achava, cada vez mais, que se eu andava acreditando nestas bobagens era veado mesmo.

Do lado profissional a fissura também abriu feia. Seria impossível fazer residência daquele jeito. Eu estava mais doente do qualquer paciente que pudesse precisar do meu auxílio. Sucumbi. Não havia outra palavra que descrevesse o que me aconteceu. Eu, definitivamente, sucumbi aos chamados do morto e, formado, voltei à cidade natal.

Depois de uma sessão de sustos com a minha magreza e de um desfile que durou três dias, em que entendi que meia cidade fingia que ia visitar minha mãe para me ver em desdita, consegui dormir uma noite sem o pesadelo. Aquela procissão de olhos maus parecia ter me lavado do pecado, me perdoado do erro que eu não havia cometido, mas acreditava que sim.

Embora tivesse perdido a namorada com cheiro de flor e desejasse do mais profundo recôndito da minha alma me aconchegar com ela nas mantas grossas de lã de ovelha, posso declarar que a primeira noite que dormi sem o pesadelo foi a noite mais feliz da minha vida.

Era uma, eram duas, eram três. Três noites sem pesadelo. A casa gostosa, a cama no mesmo quarto de quando eu era moleque, os mesmos bancos na praça, o mesmo botequim, a sala com a mesa de centro pé de palito coberta pela mesma toalha de crochê e o conjunto estofado estampado de petúnias, lindas, róseas, tudo igual. E nunca um cenário me parecera tão novo, tão lindo, tão fantástico. Arroz, feijão, lingüiça de porco feita ali mesmo no vizinho, couve rasgada, torresmo e quitanda de amanteigados, biscoitinhos de nata, sequilhos. Eu era um outro homem e já pensava em voltar para a minha china, no distante rio grande, aquele sul que me acolhera e de onde eu não queria ter partido. Comecei a fazer planos. Engordei uns cinco quilos em um mês de casa paterna e fiz a mala. Ia voltar no dia seguinte, a residência médica me esperava, a namorada também.

Todo mundo já sabe o que aconteceu, então. O pesadelo. Aquele. Pior do que da primeira vez, com veias roxas se desmanchando, pedaços de pele caindo, tudo a que um pobre ser vivo tem direito a pagar de imposto de tristeza e maldição só porque permaneceu vivo enquanto o amigo morria, paguei naquela noite. O pesadelo chegava a ter um cheiro horripilante. Desfiz a mala. Estava preso, irremediavelmente, era um prisioneiro do passado, do morto, do destino. Pronto.

Consegui revalidar meu exame de residência para o interior de Minas, pedi a gorda irmã do meu amigo em casamento, fui dormir com ela no quarto que antes era dele e ainda tinha até umas flâmulas de times de futebol que ele colecionava, pregadas na parede, a mãe não deixava limpar. Ali, ouvindo o ranger da cama patente, fiz dois meninos iguaizinhos ao tio para ressuscitar a alegria da família. Consegui, só que fui ficando cada vez mais triste. Terminei a residência, inventei centenas de plantões para ficar longe daquela casa, escrevi dezenas de cartas nunca enviadas para a namorada do sul. A cidade agora não ria às escondidas da minha desgraça, me cumprimentava como um senhor de respeito. Médico, pai de família, então não era aids que ele tinha quando chegou, era tristeza mesmo, coitado, tanto que caluniaram.

Meu pai não entendia nada, minha mãe entendia tudo. Através do olhar, me dizia, filho, você está renunciando à sua felicidade, que loucura está fazendo, eu respondia, também apenas com o olhar, que era preciso para que eu me curasse. Minha sogra mineira voltou a sorrir. Meu sogro sobreviveu a dois enfartes, bem assistido pelo médico da família, que, no caso, era este cretino que vos fala. E resolveu nos dar uma imensa casa de presente. Aceitei, para escapar da casa do morto, mudamos para lá. Minha mulher gorda, que nunca perdeu o sorriso resignado de quem previa o futuro, meus dois filhos que eram a cara do titio e eu.

Agora, depois de doar seis anos da minha vida, sinto que cumpri a missão, fiz minha parte do sacrifício, acertei as contas com a vida, com Deus, com o Diabo, com Buda, com Xangô, com os deuses gregos, romanos, com todos os grãos de areia da natureza, com o Cosmo, com quem quer que seja. Pronto. Chega.

Se eu gosto dos meninos? Não. Eles são a cara do tio dos meus pesadelos insólitos, da minha insônia, da minha desolação mórbida. Não são meus. São o pagamento frustrante e forçado de um pecado juvenil jamais perpetrado. Um preço alto.

Agora, eu estou aqui, sentado diante do senhor, para resolver este caso, contei minha história, meu sogro italiano que nunca foi e nunca deixou de ser, quero que me entenda.

Se aquela morte não tivesse acontecido daquele jeito eu não teria me casado com a gorda e nem estaria aqui, zonzo, pedindo para ficar. Por enquanto não vou poder casar com sua filha, mas com o tempo eu consigo arrumar a papelada e acertar a documentação para o casamento que eu sei que italianos tradicionais não gostam de bagunça. Imagine se eu ia querer me arriscar a apanhar destes seus quatro filhos fortões (embora tenham a cara cor de rosa), eu assim meio magro, queria só ficar ao lado da namorada querida que o destino me roubou por tanto tempo.

A cidade não tem médico, eu trabalho mil horas por dia... Eu só tenho 35 anos, ela só tem 32, a filha que ela teve enquanto eu estava fora, linda, cor de rosa também, parece ser minha filha, um sentimento insólito e bendito. Eu adoro essa gaúcha cheia de vida, essa risada alta meio fora do tom, essa saúde exuberante de girassóis em flor. Se o senhor tiver um copo de vinho vigoroso, um catre de madeira cheirosa como a minha flor do sul e uma manta de lã grossa de ovelha e me der licença, eu fico.

(*) Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Hoje é diretora da revista UMA. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano).


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segunda-feira, 18 de agosto de 2008

O telefonema, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



- Alô. Bruna? Pode falar?
- Aqui ó... Essa será a primeira e a última vez que eu vou te falar. Não me liga mais! Por favor.
- O quê? O que houve Bruna?
- Não me liga mais! Não quero saber. Se quer namorar a minha prima o problema é teu. Te vira! Eu não tenho porque te ajudar...
- Bruna! O que é isso?
- Não me liga mais! Faz por ti cara. Se ela não te quer, não será eu quem vai fazer ela trocar de idéia.
- Bruna! Não estou te entendendo.
- Eu já estou cheia destas tuas ligações. Enchi saco já! Te vira sozinho. Por que eu tenho que ser a intermediária?
- Mas Bruna, eu achei que as minhas ligações...
- Não me liga mais! Quer namorar ela? Quer ficar com ela? É simples: liga direto pra ela então! E pára de me torrar a paciência...
- Se queres assim...
- Até o meu namoro está prejudicado com essas ligações fora de hora. Eu não tenho vocação para psicóloga de rejeitados!
- Eu sempre achei...
- Achou errado. Não me liga mais! Está dado o recado. Tchau!

No outro dia

- Alô Bruna? Pode falar?
- Sim. Tudo bem, gatinho?
- Eu só estou ligando para te pedir desculpa se fiz algo errado, e, para te pedir uma explicação...
-Explicação sobre o quê?
- Ora sobre o quê? Sobre ontem, né! Aquele xingamento todo sem explicação...
- Não acredito que acreditastes
-Não entendi?
- Ah ah ah!
- O que foi?
- Tu acreditastes! Era pura cena. O meu namorado andou vasculhando o meu celular e viu o teu número várias vezes nas chamadas recebidas. Esqueci completamente de apagar. Ele ficou desconfiado. Normal! Daí, eu disse que o número era de um chato que queria ficar com a minha prima e queria a minha ajuda. Ele não acreditou muito...
- E?
- E quando me ligaste ontem, eu estava com ele. Ele reconheceu o número por causa deste maldito final zero zero. Então, não tive dúvida. “Meti a boca” em ti!
- Ah ah ah! É isso então!
- É!
- A encenação foi tão perfeita que eu acreditei mesmo!
- Homens...
- O teu namorado acreditou?
- Claro! Os homens são muito bobos.
- Olha! As novelas estão perdendo uma bela atriz. Ah ah ah! Nada como ter uma amante inteligente e criativa.
- Amante não! É muito vulgar.
- Caso extra-oficial?
- Melhorou!
- Quando nos vemos?

(*) Jornalista e cronista

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Pai herói, eu?, por Seu Pedro

Seu Pedro (*)



O Dia dos Pais, para mim, é um dia feliz. Neste ano, no dia nove (sábado), adormeci assim que terminaram as cenas da novela “Pantanal”. Só pretendia acordar na manhã seguinte, às onze horas da manhã, aproveitando o descanso semanal até sentir na cama o cheiro da carne de panela subindo junto ao vapor e o chiado da panela de pressão, perfumando e abrindo o apetite de todos, por todos os cantos da casa. Domingo, sem nenhum convite, sem compromisso, sem que as dispostas e carinhosas filhas, já às 06h30, me acordem para dar-lhes o beijo e bênção, e com elas esperar o ônibus escolar. Faço este ritual, sem queixa, mas no domingo quero descansar.

Pois eu, sonhando com carneirinhos pulando cerca pra dentro do meu quintal, era o mais feliz dos dorminhocos, sonhando com um cobertor de lã. Mas, esquecido que era Dia dos Pais, sou acordado pelas crianças, seguras a uma bandeja com repleto café, por elas organizado, e a cantoria de “Parabéns pra Você...”Olhei o relógio; Eram 06h30. Após sair do jejum, sem escovar os dentes e outros assuntos, agradeci as meninas pela felicidade que deram na manhã de um dia 10 de agosto; data de aniversario de minha querida mãe, se ela ainda estivesse entre nós. Há tempo não a tenho, mas a enxergo em uma das minhas filhas, a reciclagem da família.

Ser pai não é difícil, se houver intenção em sê-lo. Basta que, por algum tempo do dia, se faça de criança também, que seja como um irmão mais velho. Brinque de avô de bonecas, não saiba tudo, deixe que as crianças lhe ensinem alguma coisa, nem que seja ser feliz. Não reclame do que gastou, mas sorria pelos momentos felizes que recebe em cada sorriso. Seja ídolo dos filhos, ao ponto deles sentirem saudades em sua primeira ausência, ao ponto de sonharem que você é um dos super-heróis, destes das histórias infantis.

Assim alegre, lembro e derramo lágrimas emocionadas e felizes pelo que me aconteceu recentemente. A professora de minha filha Sammhyra, criança com sete anos de idade, pediu que ela fizesse um painel de recortes, com estampas de super-heróis. A menina, ao chegar em casa, dirigiu-se a mim e pediu-me uma foto minha. Dei-a. Recortada, a minha fotografia foi colada entre o Super-homem, o Batman e bem ao lado da Mulher Maravilha. Eu era visto ao lado do Homem Invisível. Em contrapartida, não posso esquecer o dia em que, em roda de juizes, promotores, advogados e outros doutores, dirigiram elogios à minha suposta inteligência. Sammhyra olhou para a pessoa que me elogiou e disse: “Meu pai é só meio-inteligente. Eu ensino um monte de coisas pra ele”. Pai não é mais ditador. No muito, é alguém que já viveu mais.

(*) Seu Pedro é o jornalista Pedro Diedrichs, DRT-398/BA, editor do jornal Vanguarda, de Guanambi Bahia... É jornalista investigativo, escritor, poeta, e adepto do humor. Também conhecido como “Jornalista do Sertão”. seupedro@micks.com.br

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Sinais (mais uma história de amor), por Vitor Orlando Gagliardo

Vitor Orlando Gagliardo (*)



- Você aceita montar um jornal para nossa Paróquia?
- Claro, padre.
E dessa forma, Marcos aceitou o convite para montar um boletim informativo mensal.

Depois de três anos afastado da religião, começou aos poucos a freqüentar a missa dominical das 10h. O convite do Pe surgiu em um ótimo momento. Foram três semanas de cansativas reuniões para elaborar a parte gráfica e editorial do jornal.

O Pe sempre lembrava da necessidade de atrair os jovens e de manter fiel o público idoso (a maioria).
- No primeiro número vamos falar sobre a Pastoral dos Jovens. Procure a Jaqueline, a coordenadora - disse o Pe.

E assim foi feito. Ao falar com Jaqueline, Marcos se encantou com uma menina que estava ajudando-a. Seu nome era Patrícia. Ela era encantadora. Marcos se culpou por não falar diretamente com Patrícia. Não conseguia tirá-la do pensamento.

O primeiro jornal saiu. A repercussão foi ótima.
- No próximo sábado faremos um retiro de um dia. Seria importante sua presença.
- Estarei lá.

O Padre montou um esquema de carona. Marcos iria com um rapaz chamado Alex que ele jamais tinha visto na Paróquia. No dia combinado, um sábado por volta das oito da manhã, Marcos tem uma surpresa: o tal Alex não poderia mais ir.
- E agora, padre?
- Ele pode ir comigo. Tem vaga no meu carro – disse Solange.

Solange era catequista. Tinha participado de algumas reuniões para a criação do jornal. Para a surpresa de Marcos, Solange era justamente a mãe de Patrícia. Ela passou o retiro inteiro falando da filha. A empatia entre os dois foi imediata. Após um dia inteiro de retiro, quando já estavam chegando em casa, Solange teve de fazer uma pausa inesperada.
- Vou parar lá em casa para pegar minha filha. Ela precisa comprar uma roupa para a faculdade.

E ainda brincou com Marcos.
- Agora que você já sabe onde moro, pode passar aqui a hora que quiser.
- Só se você me convidar para um almoço.
Os dois riram.

Quando Patricia entrou no carro, seu coração acelerou. Depois de um rápido cumprimento, ficaram calados por um minuto. Marcos ficou na porta da Paróquia e as duas seguiram para o shopping.
- Como posso estar apaixonado por que nem conheço direito? – perguntava-se o tempo inteiro.

Chegando em casa, fez uma busca no orkut. Rapidamente encontrou-a na comunidade da Paróquia. Passaram a trocar recados diários. Tornaram-se amigos no MSN. Falavam-se por horas via computador. Marcaram de pegar um cinema domingo à noite. O encontro foi um pouco frio no início, mas a impressão foi boa para todos os lados.

Marcaram um novo encontro para a terça. Marcos estava inseguro. Quando foi conversar francamente sobre o que sentia, simplesmente travou. Deixou Patricia em casa. Não conseguia dormir. No dia seguinte foi tomar uma cerveja com um amigo, Zeca. Falou de Patricia. Não conseguia falar de outro assunto.

Um fato chamou a atenção. Estava acontecendo um aniversário no bar. Os dois logo repararam em uma mulher que andava para todos os lados. Essa mesma mulher começou a rodear a mesa dos dois. Ela dizia apenas gemidos sem nenhum significado. Os dois já estavam se irritando quando de repente, a mulher deu um soco na mesa e olhou fixamente nos olhos de Marcos.
- Very happy, good luck e love.
Assustados, pediram a conta.
- Meu amigo, isso foi um sinal. Convide-a para sair e fale com ela. Os anjos estão do seu lado – disse Zeca.

E assim foi feito. Marcos ligou para a Patricia e combinaram uma saída na sexta. Após alguns minutos de insegurança, Marcos tomou coragem e abriu seu coração. Patrícia respondeu com um beijo longo. Os dois estão juntos há dois meses. Mas parece que se conhecem há anos.

Já há quem fale em casamento. Em um jantar da família, uma tia de Patricia, Laurinda, falou que o casamento dos dois era questão de tempo. Nesse mesmo dia, saíram para dar uma volta e sentaram em um banquinho em uma praça. Em frente, havia uma loja de aluguel e vendas de roupas para casamentos ...

(*) Jornalista