sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Os caminhos da noite, por Talis Andrade

Talis Andrade (*)



Te ofereço a mão
pelos segredos da casa
os labirintos do corpo

Dos amantes a secreta
ambição de ficar a sós
deslizar pelas sombras
esconder-se nos lençóis

(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).

(*) Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do Diário da Noite, Jornal do Comércio (Recife), Jornal da Semana (Recife) e A República (Natal). Tem 6 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Romance do Emparedado” (Editora Livro Rápido) e outros cinco à espera de edição.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Lã de boa ovelha, por Laís de Castro

Laís de Castro (*)



Quando eu fugi de lá para estudar achei que estivesse livre. Fui embora, escolhi a faculdade de medicina mais distante que conhecia, migrei para o Rio Grande do Sul, imagine você, me bandeei quase para a fronteira da Argentina, danei a falar tu, dançar rancheira e até umas bombachas vesti, fiquei meio veado com elas, nem liguei, era tudo gostoso por lá. Durante um tempo esqueci aquele maldito dia, aquela maldita mulher chorando feito Maria Madalena, em cima do corpo do filho roxo, inchado, cheio de água por dentro e por fora. E aquela irmã gorda feito uma pipa de vinho, silenciosa, segurando a minha mão como quem perdoa o assassino do irmão, desde que ele fique ali, no lugar do morto, como se gente fosse coringa de baralho que pode tomar qualquer lugar e não tem importância nenhuma. A cidadezinha inteira ali, os sinos da igreja tocando a Ave Maria, que no interior a Ave Maria de Gonoud, coitada virou música de cadáver insepulto. E aqueles buquezinhos de flores caipiras apanhadas dos jardins chegando, das mãos de todas as mães da vila. E todos me olhando como se eu fosse o culpado.

Eu só tinha que fugir. Foi o que fiz, na primeira oportunidade.

Depois de uns três anos no Rio Grande do Sul, namorando uma moça faceira, como se diz por lá, deitando com ela em silos e pastos, imaginava que tudo estava perfeito. Tinha conseguido enterrar o passado exatamente cinco anos depois de enterrar meu melhor amigo, após daquele acidente voraz.

Que nada. A história ainda estava por começar. Numa manhã bem azul, andando pela rua, eu jurava estar vendo o falecido, da mesma idade que a minha, bonito, sorrindo para mim, vindo na minha direção, os braços abertos prontos para um abraço fraterno. Horror. Medo. Repulsão, asco, rechaço, pavor. Saí numa disparada tão grande que parecia burro bravo em fim de rodeio. Acho que galopei sem cavalo uns dois quilômetros até a língua sair da boca tão grande como uma como gravata e o coração pular feito bode novo. Caí no chão, então, sentado no meu quarto da república, deitei de bruços e chorei. Chorei uma tempestade, um temporal, uma chuva de verão que foi se tornando mais fina e virou uma garoa intensa.

Naquela tarde me mantive no quarto de piso de tacos, com uma cama e uma escrivaninha além do armário simples de duas portas, como um monge numa cela de convento, instaurando uma diligência interior para, ao mesmo tempo, entender o fato extraordinário daquela tarde e purgar meu pecado não cometido.

Naquela noite não pude visitar a namorada viçosa e com cheiro de flor, fiquei envolto no cobertor, os olhos parados no branco da parede, sentado e abraçado às pernas como se elas pudessem me proteger de um tiro que viria daquele lado. E a maldita parede branca projetava numa tela aquele rosto, que continuava vindo para mim. Tomei um calmante faixa preta, uma paulada na cabeça, ainda bem que estudava medicina e tinha acesso a todo tipo de droga. No dia seguinte acordei atrasado, perdi as primeiras aulas, parecia que um corvo tinha comido os meus olhos de tão fundos que eram.

Na faculdade, inventei uma doença para os colegas, uma ressaca, uma crise hepática, uma enxaqueca insana que me perseguia. Tinha espantado o fantasma. Fui me recuperando devagar, não sem ansiedade e o medo desgraçado de ver a figura de novo. Se o dia amanhecia lindo e o céu azul, não tirava os óculos e não passava naquela esquina dele. Sabe-se lá se o cara resolveu morar por ali... Retomei os passeios noturnos, a namorada, o mate amargo, antes um bom mate amargo do que a vida...

No fim do ano inventei uma desculpa e não fui passar o Natal com os velhos pais, os irmãos, a familiagem toda que ficara na cidadezinha. Inventei um curso de hematologia, depois misturei, falei que era de reumatologia, fiz a maior confusão e não fui. Passei o Natal comendo pato na casa da namorada, que era simples, querida, nascida de família imigrante italiana, olhos azuis como a manhã maldita, mas doces feito pirulito em boca de criança. Afinal, eu estava querendo me casar com ela e me estabelecer por lá, ou atravessar a fronteira e acertar uns trabalhos em pesos, que o peso valia muito mais que o cruzeiro naquela época. Não tinha consciência, ainda, de que ficar ali era a melhor maneira de fugir de um destino que me empurrava de volta para casa, para a minha cidadezinha e do ex-amigo morto, e ia ficando, aconchegado às mantas e cobertores com cheiro de ovelha daquela casa de madeira escura, enfeitada de tapetes rústicos bordados à mão, panelas de ferro, flores vermelhas, cheia de irmãos com rosto branco de maçãs vermelhas como aquelas que mesmo ali se colhia e comia.

Tinha me acostumado ao macarrão pesado da sogra gaúcha, ao sotaque cantado, aos gritos de alegria do sogro, às gargalhadas solenes e ao vinho tinto vigoroso. Como a vida que corria ali parecendo um rio de águas geladas, transparentes, diamante puro.

O primeiro sonho aconteceu mais ou menos uns oito meses depois daquela visão na rua. O cara estava vivo e me chamava, da casa dele, sentado na sala onde seu corpo havia sido velado, o mesmo sorriso branco, a camisa branca, a mão branca, me dizendo vem para cá, você me tirou daqui tem que tomar o meu lugar. Acordei suando como uma chaleira fervente. O segundo sonho veio depois de um mês. Eu andava esquisito e a italianada toda reparava. Era um homem com medo, cabisbaixo, tímido. Os colegas da faculdade começaram a encarnar os médicos que ainda não eram e davam conselhos das mais nobres estirpes. Desde não dormir sem drogas a não dormir sozinho, como simplesmente não dormir. Passar o resto da vida alerta, para não sonhar com aquele moleque, em quem, num momento de irresponsabilidade juvenil, eu tinha dado um caldo. Um caldo eterno. Ele morrera, sei lá se do caldo, do susto, meu melhor amigo.

Nós tínhamos levantado cedo naquela manhã azul. O azul dos olhos da amada, de todas as manhãs do verão nacional, dos meus descaminhos profanos e permanentes.

Era sábado e resolvemos ir nadar num rio que tinha logo ali, a uns três quilômetros, o que, para dois adolescentes de 16 anos, o corpo arrebatado pelo vigor e a bicicleta no portão, era exatamente nada. Vencemos a distância num átimo, mergulhamos nus em pêlo naquela água tépida que o sol aquecia levemente, a vida toda pela frente, a felicidade nas risadas, tudo lindo. O rio passava por baixo da linha do trem, os passageiros nos olhavam, quase sempre, com inveja, suando, de dentro dos vagões de primeira classe com banco de palhinha ou de segunda classe com bancos de madeira crua, a maria-fumaça soltando brasas que restavam da lenha que a impulsionava para todos os lados e queimando a roupa de todos. Ali o rio fazia uma espécie de pequena cachoeira, com as pedras que sobraram da construção da ponte e as águas se abriam numa rotunda mansa e clara. Então continuava, como se não houvesse a interrupção. A gente brincou de jogar pedra, de passar por baixo da perna em mergulho profundo, de pular do ingazeiro e de dar caldo. Foi esse último brinquedo que deu errado. Eu dei uns dez caldos nele e tomei uns dois ou três. E continuei dando, mostrando minha força, ele pedia para eu parar...

O sonho foi ficando cada vez mais sinistro e mais freqüente. Era sempre igual, recorrente, mas às vezes meu velho companheiro aparecia com a mão descarnada me convidando para ir até lá. Outras vezes lhe faltava a tampa da cabeça e, em outras, a camisa estava banhada em sangue, como se a hemorragia do afogamento quisesse se exibir, aquele vermelho vivo desafiando meus saberes da ciência, que sangue não fica vermelho esse tempo todo, mas a gente vê cada coisa...

Eu poderia ficar aqui dias, semanas, descrevendo cada sensação de enjôo, execração, repugnância, susto e temor que senti naqueles meses que se seguiram e que antecipavam minha formatura. Vomitava noites inteiras, emagreci mais de quinze quilos, o italianão começou a achar que eu andava dando e estava era com Aids. Um dia me chamou de lado, tossiu e me deu uns tiros de chumbo por meio de palavras diretas, dizendo que se eu fosse veado era para me mandar da casa dele que ele acertava as contas com a filha. Fiz tudo para que ele acreditasse no que me acontecia, contei mesmo que um sonho perverso me perseguia, que era vítima de um mal-entendido e estava sendo condenado pelo cosmo, mas essa história de cosmo ele não engolia e achava, cada vez mais, que se eu andava acreditando nestas bobagens era veado mesmo.

Do lado profissional a fissura também abriu feia. Seria impossível fazer residência daquele jeito. Eu estava mais doente do qualquer paciente que pudesse precisar do meu auxílio. Sucumbi. Não havia outra palavra que descrevesse o que me aconteceu. Eu, definitivamente, sucumbi aos chamados do morto e, formado, voltei à cidade natal.

Depois de uma sessão de sustos com a minha magreza e de um desfile que durou três dias, em que entendi que meia cidade fingia que ia visitar minha mãe para me ver em desdita, consegui dormir uma noite sem o pesadelo. Aquela procissão de olhos maus parecia ter me lavado do pecado, me perdoado do erro que eu não havia cometido, mas acreditava que sim.

Embora tivesse perdido a namorada com cheiro de flor e desejasse do mais profundo recôndito da minha alma me aconchegar com ela nas mantas grossas de lã de ovelha, posso declarar que a primeira noite que dormi sem o pesadelo foi a noite mais feliz da minha vida.

Era uma, eram duas, eram três. Três noites sem pesadelo. A casa gostosa, a cama no mesmo quarto de quando eu era moleque, os mesmos bancos na praça, o mesmo botequim, a sala com a mesa de centro pé de palito coberta pela mesma toalha de crochê e o conjunto estofado estampado de petúnias, lindas, róseas, tudo igual. E nunca um cenário me parecera tão novo, tão lindo, tão fantástico. Arroz, feijão, lingüiça de porco feita ali mesmo no vizinho, couve rasgada, torresmo e quitanda de amanteigados, biscoitinhos de nata, sequilhos. Eu era um outro homem e já pensava em voltar para a minha china, no distante rio grande, aquele sul que me acolhera e de onde eu não queria ter partido. Comecei a fazer planos. Engordei uns cinco quilos em um mês de casa paterna e fiz a mala. Ia voltar no dia seguinte, a residência médica me esperava, a namorada também.

Todo mundo já sabe o que aconteceu, então. O pesadelo. Aquele. Pior do que da primeira vez, com veias roxas se desmanchando, pedaços de pele caindo, tudo a que um pobre ser vivo tem direito a pagar de imposto de tristeza e maldição só porque permaneceu vivo enquanto o amigo morria, paguei naquela noite. O pesadelo chegava a ter um cheiro horripilante. Desfiz a mala. Estava preso, irremediavelmente, era um prisioneiro do passado, do morto, do destino. Pronto.

Consegui revalidar meu exame de residência para o interior de Minas, pedi a gorda irmã do meu amigo em casamento, fui dormir com ela no quarto que antes era dele e ainda tinha até umas flâmulas de times de futebol que ele colecionava, pregadas na parede, a mãe não deixava limpar. Ali, ouvindo o ranger da cama patente, fiz dois meninos iguaizinhos ao tio para ressuscitar a alegria da família. Consegui, só que fui ficando cada vez mais triste. Terminei a residência, inventei centenas de plantões para ficar longe daquela casa, escrevi dezenas de cartas nunca enviadas para a namorada do sul. A cidade agora não ria às escondidas da minha desgraça, me cumprimentava como um senhor de respeito. Médico, pai de família, então não era aids que ele tinha quando chegou, era tristeza mesmo, coitado, tanto que caluniaram.

Meu pai não entendia nada, minha mãe entendia tudo. Através do olhar, me dizia, filho, você está renunciando à sua felicidade, que loucura está fazendo, eu respondia, também apenas com o olhar, que era preciso para que eu me curasse. Minha sogra mineira voltou a sorrir. Meu sogro sobreviveu a dois enfartes, bem assistido pelo médico da família, que, no caso, era este cretino que vos fala. E resolveu nos dar uma imensa casa de presente. Aceitei, para escapar da casa do morto, mudamos para lá. Minha mulher gorda, que nunca perdeu o sorriso resignado de quem previa o futuro, meus dois filhos que eram a cara do titio e eu.

Agora, depois de doar seis anos da minha vida, sinto que cumpri a missão, fiz minha parte do sacrifício, acertei as contas com a vida, com Deus, com o Diabo, com Buda, com Xangô, com os deuses gregos, romanos, com todos os grãos de areia da natureza, com o Cosmo, com quem quer que seja. Pronto. Chega.

Se eu gosto dos meninos? Não. Eles são a cara do tio dos meus pesadelos insólitos, da minha insônia, da minha desolação mórbida. Não são meus. São o pagamento frustrante e forçado de um pecado juvenil jamais perpetrado. Um preço alto.

Agora, eu estou aqui, sentado diante do senhor, para resolver este caso, contei minha história, meu sogro italiano que nunca foi e nunca deixou de ser, quero que me entenda.

Se aquela morte não tivesse acontecido daquele jeito eu não teria me casado com a gorda e nem estaria aqui, zonzo, pedindo para ficar. Por enquanto não vou poder casar com sua filha, mas com o tempo eu consigo arrumar a papelada e acertar a documentação para o casamento que eu sei que italianos tradicionais não gostam de bagunça. Imagine se eu ia querer me arriscar a apanhar destes seus quatro filhos fortões (embora tenham a cara cor de rosa), eu assim meio magro, queria só ficar ao lado da namorada querida que o destino me roubou por tanto tempo.

A cidade não tem médico, eu trabalho mil horas por dia... Eu só tenho 35 anos, ela só tem 32, a filha que ela teve enquanto eu estava fora, linda, cor de rosa também, parece ser minha filha, um sentimento insólito e bendito. Eu adoro essa gaúcha cheia de vida, essa risada alta meio fora do tom, essa saúde exuberante de girassóis em flor. Se o senhor tiver um copo de vinho vigoroso, um catre de madeira cheirosa como a minha flor do sul e uma manta de lã grossa de ovelha e me der licença, eu fico.

(*) Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Hoje é diretora da revista UMA. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano).


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segunda-feira, 18 de agosto de 2008

O telefonema, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



- Alô. Bruna? Pode falar?
- Aqui ó... Essa será a primeira e a última vez que eu vou te falar. Não me liga mais! Por favor.
- O quê? O que houve Bruna?
- Não me liga mais! Não quero saber. Se quer namorar a minha prima o problema é teu. Te vira! Eu não tenho porque te ajudar...
- Bruna! O que é isso?
- Não me liga mais! Faz por ti cara. Se ela não te quer, não será eu quem vai fazer ela trocar de idéia.
- Bruna! Não estou te entendendo.
- Eu já estou cheia destas tuas ligações. Enchi saco já! Te vira sozinho. Por que eu tenho que ser a intermediária?
- Mas Bruna, eu achei que as minhas ligações...
- Não me liga mais! Quer namorar ela? Quer ficar com ela? É simples: liga direto pra ela então! E pára de me torrar a paciência...
- Se queres assim...
- Até o meu namoro está prejudicado com essas ligações fora de hora. Eu não tenho vocação para psicóloga de rejeitados!
- Eu sempre achei...
- Achou errado. Não me liga mais! Está dado o recado. Tchau!

No outro dia

- Alô Bruna? Pode falar?
- Sim. Tudo bem, gatinho?
- Eu só estou ligando para te pedir desculpa se fiz algo errado, e, para te pedir uma explicação...
-Explicação sobre o quê?
- Ora sobre o quê? Sobre ontem, né! Aquele xingamento todo sem explicação...
- Não acredito que acreditastes
-Não entendi?
- Ah ah ah!
- O que foi?
- Tu acreditastes! Era pura cena. O meu namorado andou vasculhando o meu celular e viu o teu número várias vezes nas chamadas recebidas. Esqueci completamente de apagar. Ele ficou desconfiado. Normal! Daí, eu disse que o número era de um chato que queria ficar com a minha prima e queria a minha ajuda. Ele não acreditou muito...
- E?
- E quando me ligaste ontem, eu estava com ele. Ele reconheceu o número por causa deste maldito final zero zero. Então, não tive dúvida. “Meti a boca” em ti!
- Ah ah ah! É isso então!
- É!
- A encenação foi tão perfeita que eu acreditei mesmo!
- Homens...
- O teu namorado acreditou?
- Claro! Os homens são muito bobos.
- Olha! As novelas estão perdendo uma bela atriz. Ah ah ah! Nada como ter uma amante inteligente e criativa.
- Amante não! É muito vulgar.
- Caso extra-oficial?
- Melhorou!
- Quando nos vemos?

(*) Jornalista e cronista

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Pai herói, eu?, por Seu Pedro

Seu Pedro (*)



O Dia dos Pais, para mim, é um dia feliz. Neste ano, no dia nove (sábado), adormeci assim que terminaram as cenas da novela “Pantanal”. Só pretendia acordar na manhã seguinte, às onze horas da manhã, aproveitando o descanso semanal até sentir na cama o cheiro da carne de panela subindo junto ao vapor e o chiado da panela de pressão, perfumando e abrindo o apetite de todos, por todos os cantos da casa. Domingo, sem nenhum convite, sem compromisso, sem que as dispostas e carinhosas filhas, já às 06h30, me acordem para dar-lhes o beijo e bênção, e com elas esperar o ônibus escolar. Faço este ritual, sem queixa, mas no domingo quero descansar.

Pois eu, sonhando com carneirinhos pulando cerca pra dentro do meu quintal, era o mais feliz dos dorminhocos, sonhando com um cobertor de lã. Mas, esquecido que era Dia dos Pais, sou acordado pelas crianças, seguras a uma bandeja com repleto café, por elas organizado, e a cantoria de “Parabéns pra Você...”Olhei o relógio; Eram 06h30. Após sair do jejum, sem escovar os dentes e outros assuntos, agradeci as meninas pela felicidade que deram na manhã de um dia 10 de agosto; data de aniversario de minha querida mãe, se ela ainda estivesse entre nós. Há tempo não a tenho, mas a enxergo em uma das minhas filhas, a reciclagem da família.

Ser pai não é difícil, se houver intenção em sê-lo. Basta que, por algum tempo do dia, se faça de criança também, que seja como um irmão mais velho. Brinque de avô de bonecas, não saiba tudo, deixe que as crianças lhe ensinem alguma coisa, nem que seja ser feliz. Não reclame do que gastou, mas sorria pelos momentos felizes que recebe em cada sorriso. Seja ídolo dos filhos, ao ponto deles sentirem saudades em sua primeira ausência, ao ponto de sonharem que você é um dos super-heróis, destes das histórias infantis.

Assim alegre, lembro e derramo lágrimas emocionadas e felizes pelo que me aconteceu recentemente. A professora de minha filha Sammhyra, criança com sete anos de idade, pediu que ela fizesse um painel de recortes, com estampas de super-heróis. A menina, ao chegar em casa, dirigiu-se a mim e pediu-me uma foto minha. Dei-a. Recortada, a minha fotografia foi colada entre o Super-homem, o Batman e bem ao lado da Mulher Maravilha. Eu era visto ao lado do Homem Invisível. Em contrapartida, não posso esquecer o dia em que, em roda de juizes, promotores, advogados e outros doutores, dirigiram elogios à minha suposta inteligência. Sammhyra olhou para a pessoa que me elogiou e disse: “Meu pai é só meio-inteligente. Eu ensino um monte de coisas pra ele”. Pai não é mais ditador. No muito, é alguém que já viveu mais.

(*) Seu Pedro é o jornalista Pedro Diedrichs, DRT-398/BA, editor do jornal Vanguarda, de Guanambi Bahia... É jornalista investigativo, escritor, poeta, e adepto do humor. Também conhecido como “Jornalista do Sertão”. seupedro@micks.com.br

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Sinais (mais uma história de amor), por Vitor Orlando Gagliardo

Vitor Orlando Gagliardo (*)



- Você aceita montar um jornal para nossa Paróquia?
- Claro, padre.
E dessa forma, Marcos aceitou o convite para montar um boletim informativo mensal.

Depois de três anos afastado da religião, começou aos poucos a freqüentar a missa dominical das 10h. O convite do Pe surgiu em um ótimo momento. Foram três semanas de cansativas reuniões para elaborar a parte gráfica e editorial do jornal.

O Pe sempre lembrava da necessidade de atrair os jovens e de manter fiel o público idoso (a maioria).
- No primeiro número vamos falar sobre a Pastoral dos Jovens. Procure a Jaqueline, a coordenadora - disse o Pe.

E assim foi feito. Ao falar com Jaqueline, Marcos se encantou com uma menina que estava ajudando-a. Seu nome era Patrícia. Ela era encantadora. Marcos se culpou por não falar diretamente com Patrícia. Não conseguia tirá-la do pensamento.

O primeiro jornal saiu. A repercussão foi ótima.
- No próximo sábado faremos um retiro de um dia. Seria importante sua presença.
- Estarei lá.

O Padre montou um esquema de carona. Marcos iria com um rapaz chamado Alex que ele jamais tinha visto na Paróquia. No dia combinado, um sábado por volta das oito da manhã, Marcos tem uma surpresa: o tal Alex não poderia mais ir.
- E agora, padre?
- Ele pode ir comigo. Tem vaga no meu carro – disse Solange.

Solange era catequista. Tinha participado de algumas reuniões para a criação do jornal. Para a surpresa de Marcos, Solange era justamente a mãe de Patrícia. Ela passou o retiro inteiro falando da filha. A empatia entre os dois foi imediata. Após um dia inteiro de retiro, quando já estavam chegando em casa, Solange teve de fazer uma pausa inesperada.
- Vou parar lá em casa para pegar minha filha. Ela precisa comprar uma roupa para a faculdade.

E ainda brincou com Marcos.
- Agora que você já sabe onde moro, pode passar aqui a hora que quiser.
- Só se você me convidar para um almoço.
Os dois riram.

Quando Patricia entrou no carro, seu coração acelerou. Depois de um rápido cumprimento, ficaram calados por um minuto. Marcos ficou na porta da Paróquia e as duas seguiram para o shopping.
- Como posso estar apaixonado por que nem conheço direito? – perguntava-se o tempo inteiro.

Chegando em casa, fez uma busca no orkut. Rapidamente encontrou-a na comunidade da Paróquia. Passaram a trocar recados diários. Tornaram-se amigos no MSN. Falavam-se por horas via computador. Marcaram de pegar um cinema domingo à noite. O encontro foi um pouco frio no início, mas a impressão foi boa para todos os lados.

Marcaram um novo encontro para a terça. Marcos estava inseguro. Quando foi conversar francamente sobre o que sentia, simplesmente travou. Deixou Patricia em casa. Não conseguia dormir. No dia seguinte foi tomar uma cerveja com um amigo, Zeca. Falou de Patricia. Não conseguia falar de outro assunto.

Um fato chamou a atenção. Estava acontecendo um aniversário no bar. Os dois logo repararam em uma mulher que andava para todos os lados. Essa mesma mulher começou a rodear a mesa dos dois. Ela dizia apenas gemidos sem nenhum significado. Os dois já estavam se irritando quando de repente, a mulher deu um soco na mesa e olhou fixamente nos olhos de Marcos.
- Very happy, good luck e love.
Assustados, pediram a conta.
- Meu amigo, isso foi um sinal. Convide-a para sair e fale com ela. Os anjos estão do seu lado – disse Zeca.

E assim foi feito. Marcos ligou para a Patricia e combinaram uma saída na sexta. Após alguns minutos de insegurança, Marcos tomou coragem e abriu seu coração. Patrícia respondeu com um beijo longo. Os dois estão juntos há dois meses. Mas parece que se conhecem há anos.

Já há quem fale em casamento. Em um jantar da família, uma tia de Patricia, Laurinda, falou que o casamento dos dois era questão de tempo. Nesse mesmo dia, saíram para dar uma volta e sentaram em um banquinho em uma praça. Em frente, havia uma loja de aluguel e vendas de roupas para casamentos ...

(*) Jornalista

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Ilusão do paraíso, por Pedro J. Bondaczuk

Pedro J. Bondaczuk(*)



Se o Paraíso, o bíblico “Jardim do Éden”, existiu, de fato, ou se não passa de mera alegoria de como era a Terra, antes que o homem, com sua insensatez e burrice, a estragasse e emporcalhasse, é uma discussão sem fim. Pesquisadores de todas as áreas empenham-se, há séculos, para comprovar (ou desmentir com provas) sua existência ou não, em vão.

O que impede, porém, o homem de fazer do mundo todo um paraíso a girar no espaço? Sua insensatez. Sua maldade latente. Seus instintos de fera, mal-dominados pela razão. Seu egoísmo, cupidez e falta de solidariedade. Podemos chamar de tudo, este planeta azul, avariado, poluído, semi-destruído, menos de Paraíso.

Imaginem o quanto somente de dejeto fecal é gerado, diariamente, mundo afora, por 6,7 bilhões de indivíduos! E quanto se gerou em cerca de 140 mil anos de presença do homem na Terra, ao longo de sucessivas gerações. É verdade que na natureza nada se cria e nada se perde: tudo se transforma.

Mas todos esses dejetos não se evaporaram no ar, como por encanto. Estão aí, mesmo que transformados e se acumulam, em progressão geométrica a cada dia que passa. Digamos que o Jardim do Éden exista e esteja perdido em algum recanto indevassável (o que não é nada provável nesta era da globalização em que inúmeros satélites mapeiam cada milímetro da Terra).

O escritor inglês, James Hilton imaginou, no livro “Horizonte Perdido”, publicado em 1937, “um” paraíso (não especificamente “o” Paraíso, o que é bem diferente). Coube-lhe, com seu romance, que ganhou duas versões cinematográficas – a primeira de 1937, dirigida por Frank Capra e a segunda de Charles Jarret, em 1977 – a façanha de colocar na boca do mundo não a palavra Éden, mas Shangrilá.

Seu Paraíso era, na verdade, um mosteiro que “se encontrava a uma altitude de montanha” e “as montanhas que dele se erguiam eram montanhas acima de montanhas”. A “descoberta” se deu por quatro ingleses, cujo avião, que havia partido de Peshawar, no Paquistão, caiu naquele local aparentemente inóspito e inacessível.

Milagrosamente, quase todos a bordo sobreviveram e foram levados para o mosteiro budista de Shangrilá por um “grupo de tibetanos vestindo pele de carneiro, com chapéus de pele e botas de couro de iaque”. E assim começavam umas férias forçadas para os quatro passageiros do avião.

Ali, tudo funcionava com perfeição. Assustados, porém, com um mundo tão perfeito, dois dos “eleitos” acabaram por desertar, classificando-o de prisão, de lugar “doentio e imoral”. O mosteiro de Shangrilá, na verdade, existe (não, claro, com as características descritas por Hilton). Fica sobranceiro ao Vale da Lua Azul, de “surpreendente fertilidade”, onde “culturas de diversidade invulgar se desenvolviam profusa e contiguamente, sem um centímetro de solo a amanhar”.

Mas essa versão do Éden não foi nenhuma descoberta real, mas mera ficção. Imaginem, porém, que o suposto Paraíso fosse localizado por alguma dessas engenhocas que orbitam o Planeta e viesse a ser apropriado pelo homem. Não tardaria para que, logo, se transformasse num inferno. É provável que, de imediato, alguma incorporadora imobiliária o transformasse num resort, com hotéis, restaurantes, boates e tantas outras bobagens que as pessoas consideram o suprassumo do conforto e da sofisticação.

Seria, sobretudo, magnífico ponto turístico, a render dividendos para o país que se apropriasse da área e decretasse ali sua soberania e suas leis (provavelmente os Estados Unidos). Seus frutos seriam colhidos todos, até os não-maduros, para a venda. Logo, as árvores que os produzissem estariam esgotadas, ressequidas e mortas, por causa da exploração irracional.

Ademais, o Éden, não tenham dúvidas, não seria “democrático” e livre. Só os afortunados, os detentores de gordas contas bancárias, em dólares, libras e euros (claro!), para esbanjar, teriam acesso a ele. Não tardaria para que o Paraíso tivesse, ao seu redor, inúmeras atividades marginais, ilícitas e criminosas, como tráfico de drogas, prostituição, jogatina e outras tantas coisas viciosas e ruins. E, nas cercanias, dezenas de favelas.

Melhor, portanto, que esse paraíso terrestre (se existir) continue restrito ao terreno das ilusões e fantasias humanas. Só assim os pobres terão acesso a ele: através da esperança e do sonho. Morris West escreveu, a esse propósito, no romance “O Navegante”: “O paraíso terrestre é a mais velha e maior ilusão do homem. Ainda que ele existisse, nós o arruinaríamos. Por mais que os frutos estivessem ao alcance da mão, haveríamos sempre de querer os que estivessem mais alto”. Há alguma dúvida, portanto, sobre a exatidão dessas constatações? Para mim, não há nenhuma!

(*) Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Sobre despedidas, por Evelyne Furtado

Evelyne Furtado (*)



Você já estava indo. Saía aos poucos de mim. Doía e você soprava. Despedimos-nos algumas vezes. Mas você voltava. O processo foi doloroso como quem morre aos poucos.

Nem sempre foi triste. Eu já sabia que você iria. Eu até me despedi antes, certa de que não o veria mais. Então, de repentes, você surgia.

Foram boas despedidas. Nem tenho necessidade de disfarçar. Para falar a verdade: foram ótimas despedidas. Na última o dia se fez lindo e voltei para casa cantarolando, apesar de lá dentro um anjinho me avisar que talvez fosse a última vez que eu o via.
Continuamos nos despedindo por telefone. Por e-mails. Pelo MSN. As dificuldades sobre as quais você passava me preocupavam, mas eu sempre disse que ao fim daria tudo certo.

Você me ouviu chorar. Eu ouvi-o reclamar. Você dizia e desdizia. Eu dançava conforme a sua música. E você me mimava do seu jeito. Enviei mensagens de textos horríveis para você. Perdoamos-nos inúmeras vezes.

Escrevi coisas bobas, que achava lindas, para você. Você nunca escreveu bobagens para mim, seu estilo é outro, mas sua boca murmurou bobagens deliciosas de ouvir.

A noite, antes triste, virou festa e foi aí que peguei de vez na sua mão e me deixei ir. Visitei um mundo novo e recebi-o no meu.

Todo conto de fada tem fim. E o nosso não vinha com o “felizes para sempre”. Você foi e não me disse que era de vez. Alguém o viu longe daqui e me falou. A página virou com o vento e o escuro caiu sobre mim. Perdida nem vi a lua que eu brindara na véspera.

Fiz de cada trago no cigarro um sinal para você. Então, você me apareceu. Lindo como sempre. Acenando de longe. E doce como nunca vi. Adoro doces, você sabe.

Não quero pensar nos dias que virão sem mais uma de nossas despedidas. Não sei nada sobre o futuro, nem quero saber.

O que eu quero, menino, é ser feliz e serei se você também for, perto ou longe, de mim.

Como o Soneto da Separação de Vinicius. É assim que quero que você lembre de mim. É como eu vejo você. É como sinto essa despedida. Acho que ainda o verei mais tarde, para mais uma despedida, se Deus quiser.

(*) Jornalista, poetisa e cronista em Natal/RN

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Cadeira vazia *, por Urariano Mota

Urariano Mota (*)



“Entra, meu amor, fica à vontade

E diz com sinceridade

O que desejas de mim....”


As composições de Lupicínio Rodrigues representam uma das coisas mais ternas e violentas da música popular brasileira. Como ele consegue ser terno e violento ao mesmo tempo?


Não é simples. Sobre um terreno de relações desiguais, do homem imperando sobre a mulher, de relações portanto violentas, Lupicínio constrói um mundo cheio de terna compreensão para o homem que ama. E que sofre, quando rejeitado, sem abdicar jamais de uma posição que se deseja altiva.


“... Entra, podes entrar, a casa é tua

Já te cansaste de viver na rua

E os teus sonhos chegaram ao fim


Eu sofri demais, quando partiste

Passei tantas horas triste

Nem quero lembrar esse dia


Mas de uma coisa podes ter certeza

O teu lugar aqui na minha mesa

Tua cadeira ainda está vazia ...”



Observe-se, nesta música, que o amante jogado a um canto por outros é afinal procurado pela mulher que o abandonou. Ela parece chegar de mansinho, meio envergonhada, sem ousar cruzar a porta da casa que não mais é sua.


Para entrar, ela espera e precisa do convite do soberano, do soberano que, durante o tempo de abandono assistiu de camarote às lições que a ingrata levou. Até não parece o recebimento de uma amorável cadela fugida? Coisa muito terna, mas desigual, em planos diferentes, pois a casa é dele, e ela é quem o procura.


Então ele se faz paternal, concede, diz-lhe que entre, que a casa é sua, suaviza com um “meu amor”, para lhe mostrar que não é uma estranha. Poderia ainda dizer-lhe: “sei que erraste, mas como sou um bom pai, não insistirei nos teus erros”.


“... Tu és a filha pródiga que volta

Procurando em minha porta

O que o mundo não te deu


E faz de conta que sou teu paizinho

Que tanto tempo aqui ficou sozinho

A esperar por um carinho teu


Voltaste, estás bem, estou contente

Só me encontraste muito diferente

Vou te falar de todo o coração


Não te darei carinho nem afeto

Mas pra te abrigar, podes ocupar meu teto

Pra te alimentar, podes comer meu pão”


À primeira vista há o prazer da vitória sobre quem o magoou, quase uma vingança. Por trás, no entanto, há um queixume de quem se acha ter amargado uma injusta solidão. Como é homem, não chora, nem se deixa abrir numa queixa: recebe-a de volta, soberanamente. Recebe-a como quem retoma um bem roubado, é coisa sua mesmo.


O detalhe que surge e toma corpo nesse discurso de senhor e escravo é a cadeira vazia. Ninguém a havia ocupado. Durante toda sua ausência ela se fez presente naquela cadeira. Esse detalhe trai.


E sentindo-se descoberto por esta fraqueza, eis que volta o Senhor com um novo embuste: proclama, altaneiro, que não lhe dará carinho nem afeto. Chega a ser cômico. Há ternura demais nessa vingança de cadeira vazia e jejum de afeto.



“ Quantas noites não durmo

A rolar-me na cama

A sentir tanta coisa

Que a gente não sabe explicar quando ama


O calor das cobertas

Não me aquece direito

Não há nada no mundo

Que possa afastar esse frio do meu peito...”



Evidentemente, não foi Lupicínio o inventor da dor-de-cotovelo. Mas dele pode-se dizer que pôs muita dignidade num sentimento amesquinhado em penosos bolerões.


Essa dor causada, tão mal vivida em músicas que, do sofrimento de quem ainda ama, só vêem a rabugenta lamúria, ganhou em Lupicínio uma nova luz.


Normalmente as canções do gênero, quando não prometem à infiel um passional desenlace, mostram um pobre desgraçado arrastando-se aos pés da amada, pleiteando um amor impossível.


Em Lupicínio, não. A relação amorosa já existiu, não mais existe, ponto comum da dor-de-cotovelo. Mas o que acontece? Ele narra o próprio sofrimento, retrata o estado em que se encontra, sem que esse retrato nos leve ao sentimento da piedade.


Enquanto nos outros sofredores por eles só sentimos pena, na mágoa expressa de Lupicínio sentimos uma profunda empatia, casada a uma certa admiração por seu torturante heroísmo. Ele jamais é o coitado, embora sofra.


“ ... Volta

Vem viver outra vez ao meu lado

Não consigo dormir sem teu braço

Pois meu corpo está acostumado”


Ele tem o talento da expressão mais rude, bruta, direta. Não há rodeios, falsas sutilezas, o sabor encantatório de certas palavras tidas como poéticas.


Há o verso definidor de uma situação pressentida por todos, mas não ainda conhecida, porque ainda não enunciada: “ não consigo dormir sem teu braço, pois meu corpo está acostumado”.


E há o grito de dor, que é o remédio certo para a aflição: “Volta” . Sem esta curta palavra, no ápice da canção, é de se observar que ele corria o risco de cair no banal.


Ou seja, ele não é apenas o poeta que tem um mundo de visões agitando-se dentro de si, e que faz da composição um decalque desse rebuliço. Lupicínio é um artesão que põe ordem no caos das visões que deseja ver conhecidas.


Daí a ilusão do “lugar-comum incomum”. Lupicínio sabe que todas as palavras já foram ditas, que todas elas, em si, são lugares-comuns, mas que a verdade corporificada nas palavras é absolutamente original.


“ Você sabe o que é ter um amor,

Meu senhor?

Ter loucura por uma mulher

E depois encontrar esse amor,

Meu senhor,

Nos braços de um tipo qualquer?


Você sabe o que é ter um amor,

Meu senhor,

E por ele quase morrer

E depois encontrá-lo em um braço

Que nem um pedaço do meu pode ser?


Nesta música, de 1947, ele se expõe numa situação vulgarizada até o riso, a do homem que é testemunha do ato de sua substituição por outro. Lupicínio nem dá de ombros como no moderno sentimento, nem toma ares de vítima.


Ele nos convida para um mergulho no seu problema, interrogando-nos se sabemos o que é ter um amor, se sabemos, se por isto já passamos, como é duro encontrá-lo em outros braços que não os nossos.


A situação é bem velha. Velha não é a coragem de confessar essa experiência, ou, se confessa, o evitar a queda na vala comum do ridículo.


O que faz Lupicínio? Com interrogações a nós dirigidas, rasga de imediato o nosso confortável papel de assistentes, porque o conteúdo destas interrogações é saber se já tivemos um amor. Quem não? De voz embargada reconhecemos nele o nosso forçado intérprete.


“ Eu gostei tanto

Tanto quando me contaram

Que lhe encontraram

Chorando e bebendo

Na mesa de um bar

E que quando os amigos do peito

Por mim perguntaram

Um soluço cortou sua voz

Não lhe deixou falar


Ai, mas eu gostei tanto

Tanto quando me contaram

Que tive mesmo que fazer esforço

Pra ninguém notar


O remorso

Talvez seja a causa do seu desespero

Você deve estar bem consciente do que praticou

Me fazer passar essa vergonha com um companheiro

E a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou


Mas enquanto houver força em meu peito

eu não quero mais nada

Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar ...”


E aqui retornamos ao ponto de partida. O amante desprezado regozija-se da má sorte que acompanha os passos de quem o deixou. Vingança? Ou somente desfrute perverso da paixão que fica no lugar do antigo amor?


O nome mais apropriado deveria ser castigo, imposto pelo amante não correspondido. Coisa de soberano.


Um castigo imposto mediunicamente a distância. Um castigo em termos, que não destrua o objeto amado.


“ ... Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada

Sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar”.


Na verdade, a cadeira ainda está vazia. O orgulhosos médium aguarda-a, soberanamente. Superiormente compreensivo.


“ Entra, meu amor, fica à vontade

E diz com sinceridade

O que desejas de mim


Entra, pode entrar, a casa é tua

Já te cansaste de viver na rua

E os teus sonhos chegaram ao fim


Eu sofri demais, quando partiste

Passei tantas horas triste

Nem quero lembrar esse dia


Mas de uma coisa podes ter certeza

O teu lugar aqui na minha mesa

Tua cadeira ainda está vazia


Tu és a filha pródiga que volta

Procurando em minha porta

O que o mundo não te deu


E faz de conta que sou teu paizinho

Que tanto tempo aqui ficou sozinho

A esperar por um carinho teu


Voltaste, estás bem, estou contente

Só me encontraste muito diferente

Vou te falar de todo o coração


Não te darei carinho nem afeto

Mas pra te abrigar, podes ocupar meu teto

Pra te alimentar, podes comer meu pão”



* Para um programa de rádio.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.