segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Domingo no Quintal do Cosme, por Urariano Mota

Urariano Mota (*)



Os dados físicos indicam que o Quintal do Cosme fica na Estrada da Batalha, 4218, Prazeres, Jaboatão, Pernambuco. O Quintal é mesmo um quintal com mangueiras em uma casa simples. Ali se pode e se deve ir a partir das 13 horas, sempre aos domingos, duas vezes por mês. “Domingo, sim, domingo, não”, informa-nos a filha do fundador.

O que os dados físicos não dizem é que ali há concertos de música, encontros de chorões e amantes do choro. Com uma característica rara: os músicos ali tocam de graça. Minto, os músicos ali pagam para tocar, porque eles mesmos pagam o que bebem e o que comem ao fim. E que músicos! que maravilhosa velha guarda. Por isso os tais dados factuais, da notícia, jamais explicarão que ao Quintal se vai e se entra ao som de “Sofres porque queres”, ou de “Doce de Coco”. Os 5 Ws da notícia não podem explicar por que estou até agora sob o impacto do que ouvi no último domingo. Murmurando, Naquele tempo, Vibrações, Um a Zero, Flamengo, vontade tenho de escrever somente com nomes de choros, porque

No bandolim há um homem, um músico negro de 84 anos, de apelido Chocho, que me fez dizer: “se Deus existe, quando eu tiver 84 anos, eu quero estar como seu Chocho”. E não disse nem que gostaria de ser como seu Chocho, porque não se pode abusar da infinita misericórdia divina. Chocho toca bandolim, violão, cavaquinho, compõe, e sorri, quando um acorde mais feliz o acompanha. O riso dele é tão bom quanto a sua genialidade. Chocho gargalha, quando uma mulher o beija, na face. “Tenho mais de 100 composições”, ele me diz, “mas tenho que contar uma por uma, pra ter certeza”. Ao redor dele tocam Josué no violão, Geraldo no canto e no cavaquinho, Ronaldo no surdo, Tozinho no cavaquinho. Na tarde em que me encontro, chegam músicos mais jovens, como Rogério na flauta, e mais Vlaudemir, no clarinete.

Atenção para este nome: Vlaudemir. É um novo Felinho. Ele incendeia o público quando toca Na Glória, e de tal maneira que é como se ouvíssemos a composição pela primeira vez. O que para nós é graça, para ele é dedicação plena, trabalho no fogo, pois que fica rubro, do pescoço ao rosto. E porque tal ardor lhe dá prazer, emenda com Brasileirinho, para mais vermelho ficar. Respira, agradece os aplausos, e ataca com “Saxofone, por que choras?”. Se eu pudesse traduzir em palavras o que ele faz com o clarinete, eu diria que ele alterna graves, gravíssimo, agudos, agudíssimos no choro. Em um mesmo clarinete parecem tocar dois músicos, como se fossem dois encarnados em um só Vlaudemir. Então anotei no meu surrado caderninho, com os olhos rasos d’água: esse virtuosismo tem um nome, FELICIDADE.

Mal refeito do abalo, eis que a trupe, os músicos de corda atacam em conjunto Naquele Tempo. Não sei, desse jeito este ateu que lhes fala ainda vai acreditar que existe Deus no céu. Naquele Tempo tocado por Chocho, Josué, Geraldo, Tozinho, para me expressar em português educado, é uma cópula coletiva. Quando entram os violões e o bandolim ferindo as cordas, dentro de mim acende-se a certeza de que esses devassos fazem um assalto coletivo ao amor. Novos hunos amorosos, eles exibem a mais funda alegria de tocar. De tocar nas cordas e em toda a gente. São e somos todos tomados por sua alegria. Alegria de suas conquistas, que eles dividem, multiplicam, somam. O acompanhamento das cordas por vezes é tão bom, que deixa de ser “acompanhamento”. Se essas cordas acompanham, então todos entramos em uma festa acompanhados por Chaplin. Quero dizer, esse acompanhamento jamais será coadjuvante. Os músicos não competem entre si, eles se completam assim como os braços acompanham as pernas, o peito, o rosto, o coração.

Em resumo, amigos, esta é a notícia: no Quintal do Cosme eu vi o amor coletivo. E para minha alegria aprendi que um amor assim não é promíscuo.

(*) Urariano Mota é pernambucano. Escritor, jornalista, publicou o romance Os Corações Futuristas, cuja paisagem é a ditadura Médici.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Entrar na pele do outro, por Risomar Fasanaro

Risomar Fasanaro (*)



Minha amiga Dina me envia uma linda mensagem em que declara que precisa ler para sentir que “tudo parece inteiro”. Diz que precisa “entrar na vida do outro, nas palavras do outro, viver com e pelo outro, distanciar-se de si mesma, da sua trajetória (sempre inacabada), seguir o caminho do outro...”.

Mergulho em suas palavras e me pergunto: será que a maioria das pessoas não é assim? Não sei se mais feliz, mas acho maravilhoso embrenhar-me nas matas com Riobaldo e Diadorim; quando sinto a terra do sertão mineiro, ouço a conversa dos dois, percebo a tentativa inútil de esconder o amor que um sente pelo outro. Como sou feliz quando sinto o cheiro do mato, o roçar dos galhos nos meus braços, ouço o canto dos pássaros, vivo a paixão que se enreda nas entrelinhas dos diálogos, quando me detenho no olhar de Riobaldo pousado em Diadorim, e sinto as emoções que eles sentem.

Faço isso com tamanha verdade, que lendo também não sou mais eu. Quantas vezes, de salto alto sou Sinhá Vitória, tropeçando, sem andar direito nessa cidade grande... Quantas vezes não me oprime o peito à espera da chuva, à minha impotência diante da ausência de caminhos. Busca tão difícil quanto a dela diante da seca?

E quantas vezes sou Macabéa, um dinossauro na Avenida Paulista, chegando do Recife com aquela pureza, aquela ingenuidade, aquele desarmamento diante da vida. Frequentemente Precisando tomar um analgésico, para ver se diminui a dor de viver.

É... viver é difícil, talvez por isso a gente se refugie na pele do outro, ainda que esse outro muitas vezes sofra tanto ou mais do que nós...

Macabéa, por exemplo, me comove até as lágrimas. Quando releio “A Hora da Estrela” sinto vontade de sentar em um banco de alguma praça e colocá-la no colo, de embalar Macabéa, cantando “Terezinha” do Chico Buarque, até que ela durma.

Por causa desse mergulho, já tentei três vezes ler “Crime e Castigo” de Dostoievski, “Os Subterrâneos da Liberdade” de Jorge Amado e “Memórias do Cárcere” de Graciliano Ramos. Fico acanhada quando me perguntam o que acho dessas obras. Nada, não acho nada porque nunca consegui passar da página vinte. Isso é grave? Sim, para uma professora de literatura é mais do que grave, é gravíssimo, mas que fazer? Não consigo...

Relembro o susto que tomei no dia em que estava eu “posta em sossego” lendo “Grande Sertão: veredas” de Guimarães Rosa. De repente Diadorim leva um tiro e Riobaldo lhe abre a camisa para tentar salvá-la e vê os seios dela, descobre que Diadorim é uma mulher. Meu susto foi tamanho que quase tive um peripaque, e a tristeza, a dor que senti foi tão grande que poderia compará-la próxima a de Riobaldo.

Parto para a poesia e releio “O Caso do Vestido” de Drummond. Fico revoltada com a mansidão daquela mulher a viver a solidão desamados, a guardar o vestido da amante do marido pendurado atrás da porta como a refazer todos os dias o caminho daquele que a traiu.

Cansada daquela resignação, releio “O Rio” de João Cabral. Quanta seca, quanta fome, quanta miséria. É... parece que a literatura, com poucas exceções, é parente do jornalismo: se faz com notícia ruim. E que contradição: poucas coisas na vida nos proporcionam tamanho prazer.

Nunca tomei LSD, nem cheirei cocaína, mas duvido que alguma droga proporcione o maravilhamento que um bom livro nos traz. Duvido.

(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

domingo, 16 de novembro de 2008

Casos de família, por Urariano Mota

Urariano Mota (*)



Conversavam em um bar. Os amigos possuíam cada vez mais o hábito de conversar assim. Dessa vez conversavam sobre uma sombra que sempre os acompanhou, a família. Não da família em geral, da família em abstrato, mas de suas próprias famílias.

Dizia um narrador:

- É interessante como a família, como se fosse o lugar e a terra da fraternidade, resiste às mais duras experiências.

“É como o socialismo”, pensou um outro, mas nada disse, para evitar o assunto mais amargo. E por isso ouviu a continuação do primeiro narrador:

- A família não é a terra fraterna, de concórdia, onde todos somos humanos.

“Sei, e como sei !”, vontade teve de golpear a mesa o que falava em silêncio. Mas nada fez, a não ser amargar e ouvir.

- A minha irmã se encontra enferma, enferma e bem fraquinha. Ela mora em uma casa simples, que comprei à custa de economias, para que nela terminassem os dias a minha mãe e ela, que vive solteira. Pois bem. Acabo de saber agora que começaram um movimento... começaram: primos, primas, sobrinhos, bandidos em geral. Pois mal. Começaram um movimento para tomar-lhe a casa. Minha mãe tendo falecido, só restaria a minha irmã. Por isso alegam que ela perdeu a lucidez, e por isso eles, os lúcidos, querem fazê-la perder também a casa. Eu sei que de um ponto de vista legal isto não é simples. Mas eu temo o pior: que eles invadam a casa e passem a ditar as regras. E aí, meu amigo, o que fazer? Brigar na justiça, chamar a polícia, para expulsar gente do meu sangue?

“Como se combate uma praga de abutres? Como se luta contra uma praga de voantes? Eles tomam conta da lavoura, destroem tudo como nuvens que roubam o sol”. Assim pensa o que nada fala, e lhe chegam aos ouvidos, como se viessem de uma casa próxima, as discussões encarniçadas, as brigas ferozes, os insultos, as pancadas que saltavam como demônios em sua própria casa. Onde mesmo a terra da fraternidade? Então ele pensava que a sua família era mundiça, forma corrompida, corruptela de imundície, de gente imunda.

Um silêncio constrangido corre a mesa. Isso quer dizer, esse problema não tem solução. Isso quer dizer, para ser mais preciso, eu não vou me envolver com essa cruz, porque, afinal, tenho a minha, que é pesada e ninguém a carregará por mim. Parecem não ver, ou não querem ver, ou não podem ver que o problema de um homem é um problema de todos os humanos. Então procura-se um derivativo, como se a voz de Nat King Cole fosse uma solução, como se Stardust resolvesse o insolúvel, porque podemos todos ter um amargo que se torna suave. Diante de um problema irrespondível, cambiemos para outro problema. Então um segundo à mesa procura retomar o tema em outra frente, como se outro caminho fosse o mesmo, que muito ajudasse a ultrapassar o obstáculo.

- As famílias são felizes até o dia em que todos têm saúde e o mínimo para sobreviver. Eu sempre achei muito bonito que em minha casa, quando havia um só pão, esse pão sobrava, porque cada um deixava o pão para o próximo. Lindo, não é? Então um dia um inimigo me observou, que para isso muito nos são úteis os inimigos, eles vêem com muita argúcia a nossa ferida. Pois bem, ele me disse: “Isso acontece porque os teus filhos e mulher têm alternativa de comida. Se não houvesse nada mais que um pão, eles se matavam”. A única lei é a necessidade.

“Sei, e como sei”, afirma-se o terceiro amigo em silêncio. “A gente se acanalha devagar”. E como nada havia falado até então, fala:

- O remorso é um pecado sem perdão.

- O quê?

- Existem crimes que não prescrevem.

- É claro, é claro...

A conversa avança para outros pontos, para outros portos, para outros casos de família. Mas na sua consciência o silêncio escreve: “Eu confesso que não sabia o que era o amor. Eu não sabia, portanto, o que era a dignidade. Eu era apenas uma boca animal, só e somente uma carência oca, vazia, cachorra”. E então, como um criminoso que não suporta a vergonha de esconder mais o próprio crime, o amigo em silêncio fala:

- Eu já furtei o pão de irmãos menores, que passavam tanta fome quanto eu.

Um silêncio muito pesado toma de assalto a mesa. Até que um deles descobre uma remota salvação.

- Talvez os amigos cumpram aquela terra de fraternidade prometida. Talvez na amizade exista aquela família que nunca encontramos.

- É possível.

E depois, como uma prova de sangue:

- Eu gosto muito de Nat King Cole.

- Eu também.

- Eu também.

(*) Urariano Mota é pernambucano. Escritor, jornalista, publicou o romance Os Corações Futuristas, cuja paisagem é a ditadura Médici.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Ponto final, por Gustavo do Carmo

Gustavo do Carmo (*)



(Conto)

Na volta para casa decidi pegar o ônibus no ponto final. O abrigo estava lotado. Não tinha lugar para me sentar. Estava morrendo de cansaço. Não quis esperar em pé. Estava muito quente. Mesmo com o sol assando o meu couro cabeludo, preferi andar. Parado ele incide mais sobre a minha cabeça. Andando, pelo menos, vou uniformizando a fritura dos meus miolos.

No ponto final, além de poder ficar debaixo de uma marquise, poderia pegar o ônibus vazio, o que não aconteceria se eu pegasse de onde eu estava. Até a última parada ainda havia mais três pontos no caminho.

Inicio a minha jornada de vinte quilômetros rumo ao ponto final. Já conheço esse trajeto. Aliás, acho que nem chega a ter vinte quilômetros. Talvez cinco. O calor e o cansaço já bagunçam o meu raciocínio. As minhas contas.

Quando acabo de atravessar a primeira esquina, passa o ônibus que me leva de volta para casa. Passa direto, em alta velocidade. Sigo o meu caminho.

Passo por uma lanchonete. Pessoas comem sem pressa, como se vivessem ali. Eu também poderia parar para comer ou beber uma água de coco. Mas estava com pressa. Queria chegar logo em casa e me livrar daquele calor na minha cabeça.

Na segunda esquina vejo uma criança aparentando uns oito anos. Fazia manha. Chorava e esperneava. Provavelmente queria algum brinquedo. A mãe, impaciente, esbravejava:

— SE VOCÊ NÃO CALAR ESSA BOCA, EU TE DOU UMA SURRA!!!!

Pensei em parar em um abrigo próximo a cena. Gostaria de conferir se a mãe cumpriria a promessa. Muita gente torcia para isso. Algumas senhoras tentavam demovê-la da idéia. Se a mãe bateu ou não na criança? Não sei. Segui em frente.

Logo vi a loja de brinquedos que foi o pivô do escândalo da criança. Os funcionários ainda observavam na porta, atônitos. Poderia parar para perguntar-lhes o que houve. Mas isso não era da minha conta. Segui.

A partir da terceira esquina, avistei outro ônibus da minha linha. Acabei voltando para o ponto próximo de onde a mãe ameaçava bater na criança. Não havia ninguém no abrigo além da mulher e do menino que chorava. Parecia mais calmo. Nem sei se tinha levado a tal surra ou não. Para mim não importava. O ônibus que eu precisava chegou. Mas não parou. Eu estava no ponto errado. Continuei o meu caminho.

Repeti a passagem pela loja de brinquedos e a terceira esquina, onde eu tinha avistado aquele ônibus que me fez voltar. Continuei o caminho.

Na frente de um banco vejo um mendigo abaixar as calças e, com a apoteose apontada para quem quisesse olhar, fazia o que os políticos fazem com a nossa cidade, o nosso estado. Nosso país.

Mais pra frente, um vendedor de relógios abria o seu casaco e me oferecia as suas mercadorias, que brilhavam com a luz do sol. Eu nem dei importância. Também não reparei que ele estava nu. A mocinha de trás percebeu. Deu um grito e chamou a polícia aos berros de TARADO!! O policial militar desceu o cassetete no ambulante maluco. Já sem o meu testemunho. Eu estava longe.

Olho para outra calçada e vejo um turista fotografar um mendigo. É por isso que o Brasil não vai pra frente. As nossas mazelas são glamurizadas. Me deu vontade de atravessar a rua e mostrar para o turista a verdadeira maravilhas do Rio de Janeiro que estavam na rua paralela: a praia. Fiquei na minha. Segui o meu caminho.

Duas esquinas depois eu vi uma multidão cercando alguém ou alguma coisa. Dando mais alguns passos, deu para ver um homem caído no chão. O sangue se empoçava e escorria pelo asfalto quente. Nem quis saber se estava morto ou não. Continuei andando.

Já estava a umas três esquinas do ponto final quando avisto outro ônibus parado no semáforo logo no final da calçada. Atravesso rapidamente com o sinal aberto. Quase sou atropelado. Não dá tempo. O semáforo abriu e o ônibus seguiu o seu caminho. E eu o meu.

Passo por uma senhora com o rosto ensangüentado, chorando, dizendo para policiais que foi assaltada. Na esquina seguinte, ouço tiros. Parece ser um assalto. Fico com medo. Paro numa lanchonete e compro um refrigerante. Com a cara e a coragem, sigo em frente. Ando a passos rápidos. Apesar do meu cansaço. Dois ladrões quase me empurram e entram na rua transversal. Os policiais, também. Era um assalto no supermercado do outro lado da rua.

Consigo fugir das balas perdidas. Consigo chegar ao ponto final. Não consegui pegar o ônibus que estava parado, me esperando. Algo pesado caiu sobre mim. Pesado como uma marquise.

(*) Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Preparando o terreno, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



- Alô, amor?
- Oi meu bem!
- Podes falar?
- Posso. Fala...
- Estou te ligando para dizer... Para dizer que estou com saudade!
- Também estou, amor! Eu sei que tenho trabalhado muito nestes últimos meses e não tenho te dado a devida atenção!
- Pois é... Tu vais vir cedo para casa?
- Hoje, por incrível que pareça, irei sim! Daqui a pouco. Por quê?
- Estava pensado em fazermos uma noite especial. Uma noite romântica. O que achas?
- Ótima idéia! Quer ir a qual restaurante? Depois a um...
- Não! Eu mesma vou preparar a nossa comidinha. Na nossa casinha... Vou fazer o seu prato predileto.
- Sei! Não quer sair mesmo? Olha lá...
- Não mesmo! Vou comprar o teu vinho preferido...
- Que beleza! Mas não vai dar muito trabalho, Eduarda?
- Trabalho nenhum, meu amor! Por ti eu faço qualquer coisa.
- Que bom! Nos falamos depois então...
- Não! Quer dizer sim! Mas deixa eu te dizer mais uma coisa antes...
- Fala.
- Acho que aquele lingerie que encomendei, do catálogo que te mostrei outro dia, chega hoje...
- Uuuh... Já vi que o meu benzinho está quente hoje.
- Isso mesmo! Como diz a música: pode vir quente que estou fervendo!
- Ah ah ah! Sua safadinha! Cheia de más intenções.
- Ou melhor, boas-intenções, meu amor!
- É verdade!
- E tem mais...
- Tem mais é?
- Sim! Hoje, vou fazer aquilo que tanto me pedias.
- Oba! Até que enfim cedes aos meus apelos. Essa noite vai ser ótima! Já estou louco para ir pra casa...
- Calma, seu assanhado!
- Meu bem, preciso desligar. Estão me chamando para uma reunião.
- Tudo bem, meu amor! Mas só deixa eu te falar uma última coisa...
- Fala! Sou todos ouvidos...
- É que estou com um probleminha...
- O que foi meu bem? Qual o problema? Podes falar. Ah! Antes que eu esqueça, tu podes passar aqui na empresa e me pegar às 18h?
- Pois é, meu amor! Justamente esse é o probleminha que eu tinha para te falar... É que... É que... Acabei de bater com o nosso carro! Pronto! Falei... Estou bem, não te preocupes, mas o carro... Mas o carro amassou um pouquinho...
- EDUARDA!

(*) Jornalista e cronista

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Festa surpresa, por Celamar Maione

Celamar Maione (*)



Sexta-feira, sete da manhã. Marielza acordou Salustiano com um beijo festivo.
- Parabéns pra você, nesta data querida!
- E eu lá tenho motivo para comemorar alguma coisa?
- Nossa, homem, que baixo astral! Hoje é seu aniversário! Toma, abre o presente.
- Cueca nova!
- Gostou?
- É uma coisa que a gente sempre precisa, né?

Deu um sorriso apertado, saiu da cama e foi tomar banho para ir trabalhar. Tentando agradar o marido, Marielza caprichou no café. Salustiano saiu para a repartição mais animado. Em seguida, Marielza se arrumou e foi para o escritório. Antes, tocou a campanhia da vizinha e amiga Rosiele.
- Tudo certo para logo mais?
- Certíssimo! Fica tranqüila.
- Então vou deixar a chave lá de casa com você.
- Deixa sim. Eu adianto os preparativos. Bom trabalho.

Pegou o ônibus cantarolando. Trabalhou de bom-humor. Ás cinco em ponto bateu o cartão e foi pra casa. Encontrou Rosiele montando os arranjos e enfeitando a sala.
- Tá conseguindo encontrar tudo?
- Só tive dificuldade para achar os guardanapos, mas já estão na mesa.
- E o bolo?
- Em cima da geladeira.

Empolgadas, colocaram as cervejas e os refrigerantes no freezer. Montaram uma mesa com o bolo e os doces e deixaram os salgadinhos prontos para serem aquecidos no microondas. Às sete, em ponto, a mãe de Salustiano tocou a campanhia :
- Nossa, tô orgulhosa! Meu filho merece tudo isso?
- Isso e muito mais. A senhora sabe que amo seu filho.

Logo chegaram os irmãos, as cunhadas e os sobrinhos do aniversariante. Oito da noite, quando ele colocou a chave na porta, apagaram as luzes e fizeram silêncio. Assim que ele entrou, iluminaram a casa toda e cantaram parabéns. Salustiano empalideceu. Nos olhos, uma sombra de alegria e outra de preocupação. Marielza foi a primeira a abraçá-lo. Entre surpreso e preocupado falou baixinho no ouvido da esposa:
-Depois você vai me explicar que loucura é essa.

Ela deu uma risadinha e tentou disfarçar o constrangimento. Em seguida, a família rodeou Salustiano. Queiroz, o irmão mais velho, deu um tapa na barriga e gritou:
- E aí cunhadinha, sai ou não sai a loura gelada?

Rosiele ajudava Marielza a servir os convidados. A sogra, com um sorriso de mostar as gengivas, jogava com os pés, um salgadinho para debaixo do sofá e comentava, para disfarçar:
- Que vizinha maravilhosa é a Rosiele!

A família conversava animada enquanto mastigava com avidez. Só o aniversariante, em meio à alegria, demonstrava um estranho abatimento. Queiroz foi quem o tirou da prostração:
- E aí, Salu, desce ou não desce outra loira gelada?

Ensimesmado, Salustiano entrou na cozinha e encontrou Marielza e Rosiele cochichando. Pediu licença à vizinha e ficou a sós com a esposa. Levou-a para um canto da cozinha e desabafou o que carregava entalado na garganta.
- Você tá maluca de dar essa festa?! Nós estamos afundados em dívidas, devendo a banco e você me gasta dinheiro com festinha de aniversário?
- Deixa de ser mal-agradecido. Não está gostando?
- Como é que eu vou gostar sabendo que terei que pagar pelo seu delírio? Você quer me arruinar? Como a gente vai pagar isso?
- Não se preocupe. Deixa comigo.Já acertei tudo. Você não vai gastar nada.
- Você vendeu alguma coisa? Roubou? Sei lá. Fez alguma merda?
- Nada disso. Depois eu falo. Curte a festa.
- Não consigo. Minha cabeça está explodindo.
- Já disse, curte a festa, depois conversamos.

Queiroz entrou na cozinha gritando, interrompendo as lamúrias do irmão:
- Sai ou não sai mais uma gelada? Que festão hein? Depois diz que tá no fundo do poço!
Meia-noite em ponto, os convidados cantaram os parabéns. Marielza fez questão que a primeira fatia fosse a dela. Saindo pedaço de bolo pelos cantos da boca, Queiroz comentava, com ares de inveja:
- A Carminha nunca fez uma festa surpresa pra mim! Que se dane minha glicose alta. Esse bolo de chocolate tá uma delícia!

Quase uma da madrugada, os convidados se foram, empanzinados. Rosiele piscou para Marielza:
- Amiga, vou ficar para ajudar na limpeza.

Trocaram um sorriso de cumplicidade. Marielza foi até o quarto, pegou uma bolsa, colocou a camisola e chamou o marido.
- Tranca a porta. Precisamos conversar . É importante.

Ele se sentou na beirada da cama, intrigado. Depois de conversarem, Salustiano, colocou a mão na cabeça, enquanto balançava a perna, nervoso:
- Você é maluca, Marielza. E se eu não concordar?
- Se você não concordar, vai ficar mais encalacrado ainda Escolhe.
- Mas isso é coisa que se faça?
- A Rosiele está sem homem há dois anos. Custa dar uma moral pra minha amiga?
- Mas logo eu?! O que é que eu faço agora?
- Até parece que você não sabe. Se vira, queridinho. A festa foi um sucesso.
- E você? Vai pra onde?
- Durmo na casa dela. E olha, seja homem pelo menos pra isso. Não me decepcione.

Marielza foi embora, carregando um pratinho com doces e salgados. Antes de bater a porta, desejou boa sorte, falou para o marido usar a cueca nova e fez uma última recomendação:
- Comportem-se! Nove horas quero voltar pra casa e encontrar meu maridinho inteiro.

Sem escolha, Salustiano tomou um banho para relaxar. Enquanto a água escorria-lhe pelo corpo, pensou: “Até que a Rosiele é gostosinha. A Marielza é muito criativa!”

Foi pra sala só de cueca. Para suavizar o ambiente, colocou um CD de música romântica. Na cozinha, pegou a última garrafa de cerveja. Serviu. Beberam no mesmo copo. Excitado, apagou a luz e esticou as mãos tirando-a para dançar. Apertou-a contra o corpo e beijou-lhe a nuca. Ela correspondeu.

Enquanto Salustiano pagava a dívida, Marielza se deliciava com os doces, ouvindo música. Antes de dormir, suspirou, sonhadora, e sentiu orgulho de si mesma. A madrugada rompia no céu estrelado quando ela adormeceu com um sorriso no rosto.

(*) Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.