segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Domingo no Quintal do Cosme, por Urariano Mota

Urariano Mota (*)



Os dados físicos indicam que o Quintal do Cosme fica na Estrada da Batalha, 4218, Prazeres, Jaboatão, Pernambuco. O Quintal é mesmo um quintal com mangueiras em uma casa simples. Ali se pode e se deve ir a partir das 13 horas, sempre aos domingos, duas vezes por mês. “Domingo, sim, domingo, não”, informa-nos a filha do fundador.

O que os dados físicos não dizem é que ali há concertos de música, encontros de chorões e amantes do choro. Com uma característica rara: os músicos ali tocam de graça. Minto, os músicos ali pagam para tocar, porque eles mesmos pagam o que bebem e o que comem ao fim. E que músicos! que maravilhosa velha guarda. Por isso os tais dados factuais, da notícia, jamais explicarão que ao Quintal se vai e se entra ao som de “Sofres porque queres”, ou de “Doce de Coco”. Os 5 Ws da notícia não podem explicar por que estou até agora sob o impacto do que ouvi no último domingo. Murmurando, Naquele tempo, Vibrações, Um a Zero, Flamengo, vontade tenho de escrever somente com nomes de choros, porque

No bandolim há um homem, um músico negro de 84 anos, de apelido Chocho, que me fez dizer: “se Deus existe, quando eu tiver 84 anos, eu quero estar como seu Chocho”. E não disse nem que gostaria de ser como seu Chocho, porque não se pode abusar da infinita misericórdia divina. Chocho toca bandolim, violão, cavaquinho, compõe, e sorri, quando um acorde mais feliz o acompanha. O riso dele é tão bom quanto a sua genialidade. Chocho gargalha, quando uma mulher o beija, na face. “Tenho mais de 100 composições”, ele me diz, “mas tenho que contar uma por uma, pra ter certeza”. Ao redor dele tocam Josué no violão, Geraldo no canto e no cavaquinho, Ronaldo no surdo, Tozinho no cavaquinho. Na tarde em que me encontro, chegam músicos mais jovens, como Rogério na flauta, e mais Vlaudemir, no clarinete.

Atenção para este nome: Vlaudemir. É um novo Felinho. Ele incendeia o público quando toca Na Glória, e de tal maneira que é como se ouvíssemos a composição pela primeira vez. O que para nós é graça, para ele é dedicação plena, trabalho no fogo, pois que fica rubro, do pescoço ao rosto. E porque tal ardor lhe dá prazer, emenda com Brasileirinho, para mais vermelho ficar. Respira, agradece os aplausos, e ataca com “Saxofone, por que choras?”. Se eu pudesse traduzir em palavras o que ele faz com o clarinete, eu diria que ele alterna graves, gravíssimo, agudos, agudíssimos no choro. Em um mesmo clarinete parecem tocar dois músicos, como se fossem dois encarnados em um só Vlaudemir. Então anotei no meu surrado caderninho, com os olhos rasos d’água: esse virtuosismo tem um nome, FELICIDADE.

Mal refeito do abalo, eis que a trupe, os músicos de corda atacam em conjunto Naquele Tempo. Não sei, desse jeito este ateu que lhes fala ainda vai acreditar que existe Deus no céu. Naquele Tempo tocado por Chocho, Josué, Geraldo, Tozinho, para me expressar em português educado, é uma cópula coletiva. Quando entram os violões e o bandolim ferindo as cordas, dentro de mim acende-se a certeza de que esses devassos fazem um assalto coletivo ao amor. Novos hunos amorosos, eles exibem a mais funda alegria de tocar. De tocar nas cordas e em toda a gente. São e somos todos tomados por sua alegria. Alegria de suas conquistas, que eles dividem, multiplicam, somam. O acompanhamento das cordas por vezes é tão bom, que deixa de ser “acompanhamento”. Se essas cordas acompanham, então todos entramos em uma festa acompanhados por Chaplin. Quero dizer, esse acompanhamento jamais será coadjuvante. Os músicos não competem entre si, eles se completam assim como os braços acompanham as pernas, o peito, o rosto, o coração.

Em resumo, amigos, esta é a notícia: no Quintal do Cosme eu vi o amor coletivo. E para minha alegria aprendi que um amor assim não é promíscuo.

(*) Urariano Mota é pernambucano. Escritor, jornalista, publicou o romance Os Corações Futuristas, cuja paisagem é a ditadura Médici.

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