quarta-feira, 28 de maio de 2008

Ele, por Evelyne Furtado

Evelyne Furtado (*)



No carro dirigindo-se ao trabalho, "ele" pensava preocupado no rumo que a sua vida havia tomado. Há algum tempo levava uma vida sem graça. Tinha uma família saudável e equilibrada. Profissionalmente estava muito bem, o que possibilitava uma vida confortável à família.

Seus filhos eram crianças alegres e normais. De Santa, sua mulher, não podia reclamar. Ela era a própria perfeição. Bonita, educada, boa mãe, inteligente, dedicada e fiel.

A paixão dos primeiros tempos não existia mais, se é que existiu, mas "ele" se sentia bem com ela, que parecia bem adaptada àquela vida.

Parecia um quadro ideal, mas para ele faltava alguma coisa. Sentia necessidade de algo novo que viesse a dar novas cores à sua vida.

Foi nesse período que começou a desejar outras mulheres. A primeira escapulida foi em um congresso de Direito Constitucional, quando dormiu com uma colega de outro estado.

Sobrou-lhe uma sensação de liberdade e um pouco de culpa, que ele resolveu na joalheria do próprio hotel, quando comprou a primeira jóia daquela coleção.

Estava tudo bem, mas ele queria mais. Sexo avulso não estava lhe satisfazendo. Nessa altura conheceu Inês, a nova secretária do escritório. Claro que a primeira coisa que percebeu foi a beleza e a sensualidade contida da moça. Depois percebeu sua carência, conheceu suas decepções amorosas e partiu para a conquista.

Era o prato ideal. Com ela não seria só sexo, pois ela era uma pessoa educada e bem-instruída. O melhor de tudo era a cama, onde ele ousava e ela gostava.

A seu favor também tinha a carência de Inês, que ao se apaixonar não queria perdê-lo. E foram maravilhosos aqueles meses de paixão ardente. Ele confessava a sua paixão, jurava que ela era a mulher da vida dele e que o fim do casamento era questão de tempo.

Mas e agora? A coisa se complicara. Inês cobrava a sua presença. Santa já começava a desconfiar de suas escapadas e se não reclamava, sentia, pois o seu olhar não era mais o mesmo e "ele" se sentia culpado. Não queria abrir mão da vida equilibrada que tinha em casa. Nunca quisera.

Porém, não queria perder Inês, que se sacrificara por ele. Já havia usado todos os artifícios possíveis para conciliar as duas mulheres na sua vida, mas previa que teria que tomar uma decisão brevemente. Chegando ao escritório já olhou Inês com ar de saudade. Chamou-a para uma conversa no almoço, onde explicou que teriam que se afastar, pois sua mulher estava desconfiada e sofrendo muito, assim como os filhos.

Inês sentiu o golpe e quase chorou ali mesmo. No carro ela não agüentou e lhe disse poucas e boas. "Ele" a calou com um beijo. Seguiram para o apartamento dela e fizeram amor a tarde inteira. "Ele" sabia que era uma despedida. Ela não.

Chegando em casa, foi questionado pela mulher e fez sua confissão arrependida. Jurou que terminara tudo e chorou abraçado com Santa, que nunca mais confiou nele e descobriu o que lhe faltara por tanto tempo: a paixão que "ele" nunca teve por ela.

Quanto a Inês foi chamada pelo sócio e amigo do ex-amante para uma conversa. Então ficou sabendo que "Ele” viajara para a Europa com a família para terminar um doutorado e que só voltaria em dois anos.

Foi assim que Inês recebeu a pior notícia de sua vida. Amara um mentiroso. Um Dom Juan como tantos que ela conhecera e evitara. Estava só e naquele momento queria desaparecer. Saiu da sala como se tivessem lhe dito que o sol nunca mais nasceria. As lágrimas escorriam pelo rosto e ela não se incomodava em esconder. Não se voltou para trás; se o tivesse feito veria o olhar de cobiça do seu interlocutor, que não estava muito comovido com a sua dor.

Na poltrona do avião, Santa pensava na sua ingenuidade e no canalha que ela amara por tanto tempo. Os óculos escuros escondiam sua mágoa que um dia emergeria, era questão de tempo.

"Ele" sentado ao lado, comemorava sua pequena vitória. Salvara seu casamento e sua família. Teria saudade dos beijos e do prazer que Inês lhe proporcionara por tanto tempo, mas quem sabe ela o esperaria e ainda poderiam se ver de vez em quando?

Não pensou na decepção que havia causado, nem do drama que a outra vivia. Estava salvo, pensava ele, na ilusão proporcionada pela primeira batalha ganha.

(*) Jornalista, poetisa e cronista em Natal/RN

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Alma, por Aliene Coutinho

Aliene Coutinho (*)



Trago na pele
Seu cheiro,
Na boca
O gosto da sua,
Seus olhos nos meus
Sua alma
Na minha,
Juntas
Despidas
Uma.

(*) Jornalista e professora de Telejornalismo

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Um certo João que eu conheci, por Risomar Fasanaro

Risomar Fasanaro (*)



Era março de 1975. Eu trabalhava como redatora no jornal “Diário de Osasco” que hoje foi rebatizado “Diário da Região”. Quando cheguei, a recepcionista me entregou um livro que chegara pra mim, pelo Correio.

Naquele jornal, além de reportagens, entrevistas e crônicas eventualmente eu comentava livros. E recebia muitas obras, principalmente do Ênio Silveira, da Editora Civilização Brasileira. O livro era “Leão de Chácara”, e ao abri-lo encontrei uma dedicatória: “Para Risomar Fasanaro que é de Osasco e a que, diretamente ou indiretamente, o clima deste livro pertence. Ofereço, João Antônio. Rio, 6 de agosto, 1975.

Aquela dedicatória despertou minha curiosidade: o que teria aquele livro a ver com Osasco? Quem seria aquele João Antônio? A cada um que chegava, eu perguntava, mas ninguém no jornal sabia de quem se tratava. Uma vergonha, hoje reconheço, porque, àquela altura, seus livros já eram editados na Argentina, Espanha, Alemanha, Venezuela, e Tcheco-Eslováquia. Seu primeiro livro “Malagueta, Perus e Bacanaço” recebera O Prêmio Jabuti de revelação de Autor, da Câmara Brasileira do Livro de 1963, o Prêmio Jabuti de melhor livro de contos da Câmara Brasileira do Livro de 1963, e o Prêmio Prefeitura Municipal de São Paulo de 1965.

Li o livro e logo me apaixonei pelos textos do Autor. Comentei com meu amigo Carlos Marx e logo depois ele descobriu de quem se tratava. Para minha surpresa, embora ninguém do jornal o conhecesse, a família dele morava em Presidente Altino, no mesmo bairro e na mesma rua em que ficava a redação do “Diário”: Rua Sanazar Mardiros.

Um dia, diante de minha curiosidade e insistência, meu amigo me levou até a casa dos pais do escritor, mas ele morava no Rio e só eventualmente vinha visitar os pais.

Presidente Altino se diferencia do restante da cidade. Suas ruas e praças são muito arborizadas e ainda guardam algumas características do que era a cidade no início do século XX. Algumas residências ainda datam daquela época. Não me causaria surpresa se, passando à noite, por uma de suas ruas, ainda hoje encontrássemos pessoas conversando em cadeiras nas calçadas.

Era ali em uma casarão antigo, cercado de muitas árvores e flores que vivia a família do autor de “Leão de Chácara”. Havia tanta vegetação que ele ficava meio escondido, e me lembro de que ficamos na varanda, conversando com pai dele.

Naquela época, editávamos “Veredas” uma revista cultural em que publicávamos contos, poesias, artigos sobre cinema, teatro, livros, e entrevistas com pessoas ligadas à cultura.

Um dia ficamos sabendo que ele viera do Rio visitar a família e se dispusera a conhecer o Grupo Veredas. Minha expectativa era grande, pois àquela altura havia lido todos os seus livros publicados, além de alguns contos nas publicações da época como “Escrita” e outras.

Eram umas duas da tarde quando chegamos à casa de Carlos e Irene, sua mulher na época. Sentamos em círculo, todos no chão da sala, inclusive ele, e ali ficamos por aproximadamente umas seis horas ouvindo-o contar a história da imprensa nanica no Brasil, desde o surgimento do “Pasquim”, jornal que ele considerava o marco de uma revolução na imprensa. De vez em quando tomávamos um suco, comíamos uns salgadinhos, e ninguém arredava o pé da sala. Todos hipnotizados pela fala dele.

Depois daquele dia, sempre que vinha a Osasco, ele entrava em contato conosco e íamos à Vila dos Artistas, a alguma atividade cultural e, também, ele esteve na festa de inauguração do Espaço cultural “Sentinela”, ocasião em que fui escolhida “de livre e espontânea pressão”, para falar sobre sua obra. Missão difícil, pois ele fazia parte da platéia. Em uma outra ocasião, fomos com ele ao museu “Dimitri Sensaud de Lavaud”. E me lembro bem dos seus olhos pequenos, muito negros, muito vivos e brilhantes, encantado ouvindo a história do Primeiro vôo da América do Sul que tinha acontecido em Osasco. Saído do quintal daquele chalé.

Às vezes ele vinha e não dava tempo de nos encontrar, mas sempre conseguia trocar algumas palavras com o Carlos, que depois nos transmitia suas notícias. Era um dos maiores incentivadores tanto do “Grupo Veredas” quanto da revista, além de um leitor fiel, para nosso orgulho.

Talvez uns dois anos antes de morrer, ele escreveu uma carta contando que andava deprimido. Carlos me contou e ficou de passar o endereço dele no Rio para eu lhe escrever, mas os dias foram passando, a carta não foi escrita, e até hoje me penitencio por isso.

Alguns anos depois, em outubro de 1996, ao abrir o “Jornal da Tarde” me deparo com aquela triste notícia: “morre no Rio o escritor João Antônio” e o autor da matéria, cujo nome não registrei, narrava o calvário que ele vivera nos últimos anos: sem dinheiro, recorrera aos amigos e depois, sem ter como pagar as dívidas acumuladas, envergonhado fugia de todos. A matéria dizia mais: que aquele escritor, um dos maiores do país, alguém que nada ficava a dever a Machado de Assis, a Lima Barreto, a nenhum outro grande nome da nossa literatura, vivia bêbado. Acho que não precisava tudo aquilo, porque ele não tinha culpa. Um país que tem um artista com aquele talento, deveria ter dado a ele condições de viver com dignidade. Talvez se ele tivesse encontrado o apoio que merecia, não tivesse terminado daquele jeito, e até hoje estivesse entre nós.

Li a matéria muito revoltada, sem conseguir conter as lágrimas. Revivi os passos daquele homem de porte tão digno, sempre tão elegante, tão gentil que conheci aqui em Osasco. Relembrei aquele encontro com o Grupo Veredas, de suas palavras sobre Lima Barreto, o autor ao qual dedicava todos os seus livros, tamanho era o amor que lhe dedicava. Essas cenas passaram pela minha cabeça como um filme, e não vi nenhuma semelhança com a pessoa que o jornalista descrevia.

Liguei para os amigos que também já sabiam da notícia, e que estavam tão tristes e revoltados quanto eu.

Que país é este que desperdiça seus talentos de maneira tão cruel? Que país é este em que a cultura, a arte, não encontram espaço; para as quais nunca há verbas disponíveis, pois o dinheiro a elas destinado é, quase sempre, a sobra do que produz votos? Que país é este que abandona seus talentos à própria (má) sorte?

Aquela forma de morrer me dava a dimensão real do que significa a arte, a cultura em nosso país: João Antônio foi encontrado morto em seu apartamento. Calcula-se que o corpo ali ficou quinze dias, e já se encontrava quase em estado de decomposição. Nem mesmo o porteiro do prédio notou sua ausência. O que não deveria nos causar surpresa, pois se nem o país, nem o Rio, a cidade que ele adotara como se fosse seu filho, percebera que um dos seus maiores escritores vivia sob o signo da angústia, da tristeza, da solidão por que esperar que o porteiro de um prédio notasse a ausência daquele homem mal vestido, mal calçado, deprimido?

E para mim o que ficou foi a imagem de alguém que quando entrava em um ambiente o enchia de luz com sua presença, sua sabedoria, seu carisma, sua simplicidade. Alguém de quem Lima Barreto se orgulharia se soubesse o quanto ele o admirava.

(*) Risomar Fasanaro é jornalista, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

A Santa, por Evelyne Furtado

Evelyne Furtado (*)



Ele saiu e Santa ficou em casa. Ainda havia a louça do café para pôr na máquina, terminar a maquiagem, dar uma última olhada no espelho e correr para o trabalho. Santa já chegava ao trabalho cansada, afinal acordara com o beijo contumaz do marido às 5h30. Ele faria a sua corrida matinal. Ela começaria a preparar o desjejum das crianças. Depois iria acordá-las.

No começo era gostoso dar cheirinhos nos filhos – dois meninos de sete e nove anos – como não acordavam assim, puxava os cobertores, abria as cortinas. Terminava dando uns gritos e empurrando-os para o banheiro.

Quando ele retornava da corrida, a mesa estava pronta, as crianças sentadinhas à mesa e ela as servindo, enquanto comia apressada e bebia uns goles de café. Santa era uma profissional respeitada e querida pelos colegas, que quando a viam chegar, meio esbaforida, perguntavam sempre porque ela não aproveitava a carona do marido. Ela respondia que assim era melhor, pois as crianças não chegariam atrasadas ao colégio, calando-os, pois ninguém tinha mais disposição para argumentar.

Ele deixava as crianças com buzinadas na porta do colégio e seguia para o escritório de advocacia onde era sócio. Passava direto para a sua sala e ligava pedindo à secretária nova para providenciar seu capuccino com torradas. Lia o jornal, enquanto esperava. Quando a moça entrava, ele a fazia sentar, pois não gostava de beber ou comer só. Falava do tempo, perguntava pela vida dela, dizia-se entediado, pois não dormira bem. Sua mulher tinha enxaquecas terríveis e ele passava a noite cuidando dela. Coitada, era muito nova, mas há muito não tinha uma vida normal. Uma noite era enxaqueca, na outra estava cansada demais. Uma Santa! Não tinham vida sexual há algum tempo.

A moça escutava entre cética e quase querendo acreditar. Ele era bom nisso. Foi atencioso, desculpou-se por desabafar com ela e pediu reserva daquela conversa. A moça deixou a sala sentindo-se privilegiada por estar se tornando confidente do seu chefe, um cara tão novo e com uma vida tão chata.

Ele já a olhava com cara de quem preparava um novo jantar. A qualquer hora iria saboreá-lo. O dia passou rápido para ele graças aos intervalos usados para ligar para a próxima presa com qualquer desculpa. Já começava a ver reciprocidade no olhar.

Em seu trabalho Santa desempenhou suas tarefas como sempre. Conversou com amigos, principalmente com o colega que mais se importava com ela, mas que ela nem percebia que havia algo mais naquele companheirismo.

Chegou em casa correndo para preparar o jantar. Depois que as crianças dormiram, foi para o quarto esperar o marido, que reclamou mais uma vez do cansaço. Fizeram um sexo rápido, sem paixão, ao qual ela correspondeu com tristeza disfarçada. Depois ele a beijou na testa e disse: ”você é minha mulherzinha, nunca irei deixá-la". Virou para o lado e adormeceu pensando na nova secretária. Santa, ao contrário, não conseguiu dormir, sentia-se ferida, mas ainda não descobrira o por quê.

(*) Jornalista, poetisa e cronista em Natal/RN

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Mães, por Urariano Mota

Urariano Mota (*)



Para o domingo de maio, pensei em escrever alguma coisa sobre as mães. Pensei e me vi diante de um grande ridículo, porque sabia me encontrar diante do precipício do sentimentalismo. Pois esse é o dia em que o afeto paga o seu tributo ao mercado, em que a mercadoria ganha o símbolo de um amor filial. Então pensei em escrever algo que dignificasse a caricatura do sentimento, algo como a mulher cubista, para assim expressar o lado materno, oculto, de toda mulher que amamos. Aquele estremecimento que nos dá quando tocamos a mão da companheira, a maneira como nos aninhamos em seus braços, quando em seu colo buscamos abrigo. Pensei. Mas ainda assim o risco, o ridículo, o abismo, era grande. Então preferi falar pela voz de outros, em outras narrações escritas por um sujeito que leva o meu nome, numa tentativa de contornar o abismo. É o que faço a seguir. Se não virem nestas linhas nada que valha a pena, ouçam pelo menos Ingênuo, de Pixinguinha. Eu o escuto agora, e dessa forma me abrigo do ridículo.

“Mas o gênio desse povo também quer vingança. Num dia desses na feira, um desses homens sem memória do carinho viu a um canto essas flores. Estranhas, múltiplas, muitas, pequenas, uma nuvem de petalazinhas brancas. Já as havia notado um dia, lembrava-se. Então perguntou à vendedora o nome. E ela, com estranheza diante de tão reles ignorância: - “Isso é carinho de mãe, o senhor não sabe?” Então o homem em seu coração teve um baque. Alheou-se da feira e olhou o mar. “Carinho de mãe...” . Olhou o mar e olhou o horizonte. Olhou a feira e não mais viu pessoas. Como nuvens de petalazinhas brancas sentiu em sua cabeça os dedos da mulher a quem amou, quando ainda lhe pedia o peito, no trem, nos bondes, no ônibus. E sentiu a sua mão gorda, e sentiu o seu leite farto, quente, de coragem e generoso. E viu que as flores, sintomaticamente, se encontravam ao lado de frutas, de feijão, de carne, da água, à vista do mar e do sol. Então sentiu que esse carinho é fundamental, é essencial, como as coisas elementares do existir. E lhe deu, numa pancada, uma falta sem remédio.”

“- Ela foi a primeira mulher que eu amei. E esse amor tem tudo. Tem história, tem verdade, tem enredo, tem até tragédia que não acabou em sangue. Pra minha infelicidade. Se ela tivesse morrido, se ela tivesse sido morta, acho que pra mim ficava mais fácil. Mas ela me abandonou, sabe? Eu sou filho de uma puta que me deixou. Sabe? Ela foi covarde, ela não enfrentou a barra de um corno que ela botou em meu pai. Ela foi covarde e egoísta, esquecida. Me deixou sem nem olhar pra trás. Notícia, bilhete? Nada. Sabe? Não me venham pedir postura de herói. Aqui! Eu sei do que a sobrevivência é capaz. Mas não é isso. Ela era uma mulher muito bonita. Uma mulher. Bonita. Na minha infância mais remota, quando eu fui igual a todo o mundo, quando eu tive mãe, sabe?, eu tive a sorte de receber carinho. Foi a minha primeira consciência de intimidade. Os seus afagos calavam aqui dentro de minhas entranhas. E o problema é que para essa mulher eu nunca pude retribuir o carinho. Hoje eu posso dar, e essa mulher eu já não tenho. Não sei se ela está velha, se está tuberculosa, se morreu, eu não sei. Na verdade, sinto que não estou muito empenhado em saber. Bom é ficar com ela na lembrança. É uma força que chega pra mim disso. Quem teve na infância mãe com fama de puta, sabe que tudo é enfeite de latão. É tudo moeda de lata. Deus, heroísmo, decência, é tudo lata pintada de amarelo.”

“Foi em manhã como a desse domingo. De repente, assim como a água que chega sem aviso, um portador trouxe para Dona Maria, como prova de que seu marido não fugia aos deveres do matrimônio, quando tudo era aflição, eis que um anjo lhe traz uma nota de duzentos cruzeiros. Sim, o menino lembra, uma cédula que trazia no verso o Grito do Ipiranga. E o que ele mais lembra: mal o portador se ausentou, Dona Maria puxou o filho para o quartinho-célula. E o que ele mais lembra, fundamente, como a sua mais íntima e guardada pele: Dona Maria pulava, rolava pela cama, e sua alegria era tamanha que chorava de felicidade. Nos olhos vermelhos, nas bochechas subitamente róseas, a alegria dela não se continha, pronta a gritar, a anunciar para a rua: - Hoje temos almoço! Hoje temos galinha!”.

“Dona Maria, no tempo em que era Maria, era uma mulher agradável, bela. Samuel teria dela a lembrança, alguns anos mais tarde, da mulher que ela era quando ele tinha oito anos. Por quê, não o sabia. Era como se ela fosse lembrada somente em sonho, assim como se faz uma recusa com a vista e a percepção ao corpo tragado pela doença de alguém que se ama. Nessa imagem de sonho ele a veria de corpo oculto por névoas, rosto sem boca, apenas olhos cabelos e fronte da mulher com quem se comunga uma irresistível e mansa intimidade. Ele estava nela, ela era dele, e isso era uma afirmação do humano que ele era. Eram anos que lhe chegavam como de harmonia. Com efeito, a mulher que o perturbava agora, em pose de suave megera, era uma mulher que nascida para o amor, para a dignidade e respeito que se exige no amor, fora brutalizada pelo casamento, transformada em fêmea de parir. Dissemos casamento, mas nem essa violentação cerimoniosa ela alcançou, pois fora jogada a um ajuntamento carnal com um macho bêbado. A sua mãe e seu pai foram amigados, palavra frágil, pois nem amigos foram nos anos em que viveram juntos, juntos, como dizer?, habitantes inimigos sob um mesmo teto.

Os anos que Samuel tomava como harmônicos, e com isso ele apenas lembrava os anos em que seu corpo mal se deslocara do colo morno de Maria, foram os anos em que ela resistira no físico e no ardor às imposições de fazê-la um animal de parir. Foram os anos em que ela, trabalhando como cobradora de ônibus, fora uma pessoa. Isto quer dizer que ela comia o alimento ganho com suas próprias e gordas mãos. Mãos quentes, coração bravo. Ela então possuía os mesmos um metro e cinqüenta e cinco, mas punha saltos altos, e sua pele tinha cor e era fresca, os seios tinham farto leite para a maternidade, e nisso um só ponto em sua graça e elegância ela não decrescia. A sua beleza era a exuberância, chegando à pletora, de vida. Não era ela feita de traços suaves, como ele a idealizaria na lembrança. Ela era bela do que nela se movia. Os seus minutos tinham a duração da intensidade.

A uma pessoa assim, com essa ânsia de ultrapassar o instante, a uma pessoa com essa exuberância, de impulsos e abandono à vontade dos impulsos, a vida mata na altura dos trinta anos, ou prolonga os dias retirando-lhe o que é belo, numa dilação desonrosa. Pessoas assim lembram cordas tensas de um violão que se romperam e foram emendadas, cujo som agora emitido não é mais música. O destino lhes dá uma segunda chance, mudando o transbordamento em pântano. A torrente que não mais é, estagna, vira lama. Compreendê-las nesta segunda fase é o mesmo que um analise esta sombra.

Maria perdera o encanto dos seus rompantes. Tornara-se viúva quando se libertara da ditadura do marido. Para quê? - ela ganhara a liberdade quando não mais podia fazer uso dela. Estava adaptada, queremos dizer, a sua beleza se curvara à sobrevivência da frouxidão. De Maria, pessoa bonita desde o nome, ela se transformara em dona Maria, gorda, chorosa e brincalhona. Uma viúva, sem a hipocrisia e mau gosto das que se vestem de preto quando ainda são fêmeas disponíveis, mas uma viúva que era um galho retorcido, que se consumira nos deveres da maternidade. Quem a imagina nessa altura de sua vida, aos cinqüenta e três anos, cai em erro se lhe põe uns óculos, curva na espinha, costurando. Maria vive de sua arte na cozinha, fazendo bolos e doces, que entrega para a venda a meninos da vizinhança. A isto ela acrescenta o oferecimento de calças, camisas e blusas a moradores do subúrbio, que lhe compram a prestação. Ela se diz, ‘o marido se foi, que descanse’. No dia em que viu o caixão do falecido na sala, teve um crise de riso, que sufocou a custo, para não explodir na mais libertadora gargalhada. Ao espanto e censura dos vizinhos, ela respondeu:

- É que eu olho pra ele e só penso que ele está se fazendo de morto. Mas vai morrer assim mesmo - e redobrou o riso.

Nesse dia Samuel descobriu uma nova faceta em sua mãe. Depois do enterro, ao voltar para casa, e ver os cômodos ocos, como sempre acontece quando uma casa perde um dos seus moradores, ela lhe disse:

O que você quer comer? Vamos tratar de comer. A partir de hoje o meu filho é quem manda.

E abraçou-o. E chorou, sentida, desvalida e calorosamente, como a Maria dos seus oito anos. Samuel percebeu, no íntimo, que as lágrimas de sua mãe caíam sobre o seu ombro como as lágrimas de uma mulher infeliz que encontrou o seu amor. Ele a sentiu em seu peso e sua graça, graça pela solidariedade que o invadiu, peso no entanto por saber que não poderia suportar tamanha esperança.

Esta era a mulher que o destronava”.

“- Porra! - ele gritou, com os braços erguidos. - Por que nunca me disseram isso antes?

Então ele compreendeu que o bolo de feijão dado e feito por sua mãe, com farinha pesada e composta no afeto, era um valor que rajadas de balas não sacodem. Então ele soube, por aquele bolo de feijão, que dona Maria era um valor mais alto, que apostilas e livros não lhe disseram. Então ele soube, por sua mãe, que a réstia de sol era fundamental, única, inexcedível. Então ele soube que as poucas alegrias que um dia ele dera àquela senhora gorda eram o melhor prêmio, eram o seu maior galardão, a sua ordem ilustre da jarreteira. Então ele redesenhou um avião em papel usado em padaria e o mostrou à costureira e a viu pegar aquela obra com um orgulho mais fundo que o escultor do Moisés não conseguiu romper de suas entranhas. E ele ousou ver aquelas pernas rombudas de varizes. Beijou-as nos pontos mais nodosos. Então ele sentiu o gosto e a textura do chá de capim-santo que recebeu na boca nos dias em que teve febre. Pois o mundo, e o valor do mundo, lhe veio todo no sentido único do gosto. O tato, a visão, o cheiro, o que ele ouvia, o imaginado, o lembrado, o apenas entrevisto na vizinhança do sentido, passavam pelo crisol do gosto. O sabor essencial do ovo cozido, água e sal somente. Então ele viu que esse gosto na sua vida havia sido corrompido. As receitas para a adição de molhos e temperos, o concerto sinfônico, as fórmulas da mais-valia, nada disso tinha mais valor que o ovo com sal e as veias a arrebentar da mulher gorda na ladeira. Então ele a viu costurando sua camisa azul escura, da mesma cor do espaço noturno onde ele viajava, montado num corpúsculo que vinha a ser o dorso de sua mãe gorda. Que concentração e apuro ela punha na máquina, alinhavando, acariciando as costuras, bicuda, compondo a camisa da cor que ela nunca lhe dera! Aquele bico, aquelas bochechas infladas ele conhecia: ela estava zangada, aborrecida. Então, correndo suas varizes, beijando-a, e com as lágrimas a lhe correrem no rosto, em razão de todo o passado de estupidez, ele que certa vez quis fazer daquela natureza a repetição da Mãe revolucionária, ele que a censurava, que tinha repugnância do seu desconhecimento das tarefas necessárias para a construção do socialismo, ele se disse num jorro, “Estúpido! mil vezes estúpido! - Hei, é isso o inferno? Ter sido tão estúpido, é isso o inferno? Saber o erro máximo que se deu e sabê-lo definitivamente sem remédio... Isso é o inferno! Para e por todos os séculos estúpido”, então mais uma vez Samuel correu-a, afogou-a de beijos, e os beijos tinham o calor de suas lágrimas no rosto na praça, porque só então ele a compreendia: Dona Maria era uma senhora digna, corajosa, agindo como era possível ser naquele meio e naquele tempo. “Estúpido”, e mais Samuel a beijava, ao saber que a gorda estava costurando a sua mortalha com a determinação de quem faz o enxoval do último homem de sua vida. Então ele, repositório daquele amor, daquela despedida, soube o que era o contrário do beijo - era o que ele havia feito, quando dera as costas à Dona Maria. Então ele ergueu mais alto os braços e gritou:

- Viva dona Maria!

- Cala a boca, filho-da-puta.

- Respeitem a minha mãe, fascistas!

Então Samuel, embora sabendo que o tempo lhe era adverso, não porque 4 minutos de sua última vida corriam no passado, mas porque não havia tempo entre o espaço do seu braço e a arma nas costas, pois tinha à sua frente animais com sede e engatilhados, embora tendo essa clara consciência, Samuel soube que mais vale na vida a afirmação do beijo. E soube, ah como soube, na força com que sonhou em pegar na arma, com o peito ardendo ele soube que o amor é revolucionário. A mão que se dirigiu à arma teve a serena convicção de que o mundo só vale a pena se nele couber o amor que beija as pernas estragadas. Que o respeito ao que se ama é o ponto do ponto do ponto”.

Feliz Pixinguinha para todos os filhos da mãe.

(*) Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

As criaturas de barro de Zé do Carmo, por Marco Albertim

Marco Albertim (*)



Cangaceiros com asas de anjo. Anjos com fuzil no ombro, revólveres na cintura, balas, punhal comprido; carregando alforje e chapéu de couro na cabeça. O que há de comum sob o chapéu, é que tanto o arcanjo quanto o cabra têm cabelos finos, desalinhados, no molde da cabeça torneada. Assim os fez, os faz, o ceramista Zé do Carmo. Ele desceu da Rua da Conceição, uma rua urbanizada, com luzes ralas a partir das cinco horas da tarde; desceu para o Baldo do Rio, de onde tirou o massapé para moldar suas criaturas diabo-angélicas. Foi há sessenta anos, em Goiana, Zona da Mata de Pernambuco.

Saíra antes, junto com a mãe, do Abrigo da Misericórdia, nos fundos da igreja do mesmo nome. Moraram ali filho, mãe e pai, por mercê do padre. O pároco os queria sob o altar, para fazer de Zé do Carmo um carmelita; para cuidar da horta, dos jardins, do pátio de entrada, com piso de cimento. A velha fora servil e zelosa. Com a morte do pai, Zé do Carmo e a mãe saíram do abrigo. O negrinho nascera feito um curumi miúdo, cresceu doentio; com ungüentos da horta e promessas ao santo, curou-se de malária, de impaludismo. Daí em diante chamaram-no Zé do Carmo, para tributar à santa que o socorrera.

O moleque não tinha olhos para os santos, inda que se impressionando com a coragem de São Jorge matando o dragão. Absorveu a quietude dos olhos de cada anjo na abóbada da igreja, injetou-a no rosto de Corisco, o cangaceiro malvado. Corisco ganhou asas de anjo nas mãos de Zé do Carmo; nas mãos, nas espátulas e no cinzel dele. Lampião, o Virgulino, Zé do Carmo o manteve com os óculos redondos, de aro fino; os cabelos descidos sobre os ombros, e um par de asas do tamanho das espáduas do cangaceiro.

Zé do Carmo é o único ceramista do Brasil que apetrechou anjos com armas do cangaço; que deu feições de anjo a Lampião e seus homens. “O cangaceiro era um retirante, tangido pela seca; não tinha terra nem boi pra criar. Foi ser cangaceiro pra num morrer de fome, com raiva dos coronéis.” A casa onde mora é sua; é a primeira, a única que conseguiu comprar com o dinheiro do comércio de estatuetas rebeldes. Quando saíra do abrigo, foi morar na beira do rio junto a pescadores de caranguejo, gente tão pobre quanto ele. Com a morte da mãe, juntara algum dinheiro e comprou a casa da rua da Conceição.

A fama de sua cerâmica rompeu os limites do município. Tornou-se, ele, objeto da curiosidade de antropólogos, sociólogos. Gilberto Freyre visitou-o ao lado de uma comitiva de curiosos. “Não tem medo de contrariar a Igreja com suas estátuas profanas!?” – perguntaram-lhe. Ele deu de ombros, do mesmo modo quando o padre o quisera catequizar para que usasse a batina dos carmelitas. Zé do Carmo não é um rebelde, respeita a autoridade do clero e não se subordina. Os traços de suas imagens são tão simples quanto os de um retirante da seca; não têm rancor nos olhos, não falam, mas olham oblíquas, pedindo explicação para o rumo de suas vidas.

A casa de Zé do Carmo é ateliê e loja. Mora com a mulher, nunca teve filhos e não dá explicação. Passou dos 70 anos. Foi robusto, hoje é magro, tem no rosto o perfil de um corvo; na cor e nos traços. O ateliê já foi muito visitado, fizeram-lhe romarias; gentes de outros Estados. Ele passa o dia sentado numa cadeira, na loja, ao lado do ateliê. A mulher, Rosa, não se mete no comércio, não dá palpites na criação do ceramista. Ele a provisiona do necessário para os dois. Não há luxo na casa. Os móveis são mantidos luzidios, na cor negra da cabiúna. Xícaras, pratos, talheres, tudo combinando com o formato cilíndrico da mesa, do armário, das cadeiras. Ao meio-dia, da cozinha desprende-se o cheiro do feijão na panela. O ambiente cobre-se do cheiro da comida. O casal não usa mais panelas ou alguidares de barro. O carvão sob as trempes, substituiu-o por um fogão a gás. Não se queixa da vida, Zé do Carmo. Guarda nos olhos uma tristeza inconfessa, raramente sorri. Se o incitam, solta uma conversa confusa; o propósito é instilar mistério no ato de moldar estatuetas ecumênicas. Fala, sem dar substância à palavra, na “transfiguração” pela qual passou, quando distinguira no cangaceiro um querubim.

O pequeno comércio que trouxe turistas a seu ateliê, sumiu-se com a rua vazia. Ele assunta sozinho, lembrando-se de diálogos remotos. O asseio de seu ateliê, de sua loja, atrai para um serão sestroso. Zé do Carmo é o mesmo, suas estátuas se confundem com a paisagem já conhecida de todos.

Incitaram-no a visitar o papa, dar-lhe um presente; inda que com o risco de excomunhão. Ele moldou um cangaceiro tão puro quanto Gabriel, o anjo bom. Daria, ajoelhado, rogando-lhe a bênção, a João Paulo II. O pontífice veio a Recife, o arcebispo Dom Hélder Câmara fez as vezes de cicerone. Uma multidão aclamou o santo padre. O cardeal Marcinkus, desconfiado, não se impressionou com os gritos do povo; passeou seus olhos por cima dos fiéis, ignorando a oferenda pagã a caminho; pagã e de boa-fé.

Dom Hélder viu Zé do Carmo entre a multidão ruidosa, chamou-o para mais perto. Quando o embrulho com a estatueta foi desfeito, perguntou, inquieto, temendo por certo a proibição do cardeal Marcinkus: “O que é isso, rapaz? Cangaceiro com asas de anjo!?”

A estatueta ficou mas não foi levada para Roma. Zé do Carmo, pressionado pela devoção da multidão, balbuciou rezas sem nunca tê-las na cabeça. Não se aproximou do papa, não o permitiram. Voltou para casa oculto entre os romeiros, sem falar no assunto.

(*) Escritor e jornalista

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Mar do esquecimento, por Fábio de Lima

Fábio de Lima (*)



Fui e me esqueci.
Fui ao mar.
Fui ao mar para lembrar Marina.
Não resisti e chorei ao lembrá-la.
Fui no sábado pela manhã.
Não ficaria mais que uma hora.
Fui dirigindo meu carro.
Não errei o caminho.
Fui vestido de calça jeans e camisa.
Não iria entrar na água mesmo.
Fui pensando no passado.
Não levei protetor solar.
Fui acompanhado de um sorriso amarelo.
Não queria ter ido sozinho.
Fui e fiquei por lá.
Não consigo estar aqui de novo.
Fui e deixei-me sentado na areia.
Não sei quando volto.
Fui ao mar para lembrar Marina.
Fui ao mar.
Fui e me esqueci.

(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Criança diz cada coisa!, por Seu Pedro

Seu Pedro (*)



Há muito tempo atrás o médico pediatra, jornalista e dramaturgo Pedro Bloch tinha uma página na revista Manchete com o título acima. Contava histórias engraçadas e inusitadas acontecidas com crianças que passavam pelo seu consultório. Nasceu na província de Jitomir, Ucrânia, 1914, veio criança para o Brasil e faleceu no Rio de Janeiro aos 90 anos, no dia 23 de fevereiro de 2004. Ele foi para o céu, mas as histórias que ouviu e documentou ficaram, e cresceram em volume, muitas que ele não ouviu, mas que os pequeninos continuam a dizer.

Um dia destes recebi em casa uma visita de uma criança de outra cidade. Com o pai nascido em Macaúbas, no Sudoeste da Bahia, Joana tem sete anos completados agora e é filha de mãe paulista. A família veio a passeio a Guanambi, cidade da mesma região da Bahia, em visita de férias a vovó Lió que reside nesta cidade. A criança naturalmente alegre e conversadora encontrou aqui Sammhyra, nascida no Sertão, também com sete anos e igualmente extrovertida. Logo travaram uma amizade de férias. As duas passaram a freqüentar a sombra de uma frondosa mangueira, que em janeiro ainda oferta deliciosos frutos da temporada.

Histórias para lá e histórias para cá entre as duas, e era o tal “meu pai me deu, meu pai me levou, meu pai é meu herói”, que bom! A outra, igualmente, contava as vantagens do pai. Os pais orgulhos contavam as histórias dos filhos, enquanto as crianças mostravam seus novos brinquedos, coisa de Papai Noel, papai José e papai Pedro, e a depender dos momentos, as mamães também eram lembradas. “Minha mãe é professora” e outra rebatia: “A minha faz jornal, mas me ensina”. Está certa Sammhyra; quem faz jornais são os jornalistas.

Aos poucos foram percebendo entre elas o sotaque diferenciado. Uma falava porta secamente, outra enfiava um “i” no meio das palavras; “poirta” e na hora do almoço “cairne”. E a maneira interessante de falar diferente chegou a cada uma em forma de curiosidade e vontade de imitar uma a outra. Horas e horas e palavras trocadas e faladas repetitivamente. Foi assim que os pais perguntaram o que as meninas faziam: “Ela vai me ensinar falar paulista e eu vou ensinar a ela falar baiano”. A coleção de citações do Dr. Pedro tem muita chance, de nós, observadores, fazê-la crescer.

(*) Seu Pedro é o jornalista Pedro Diedrichs, DRT-398/BA, editor do jornal Vanguarda, de Guanambi Bahia... É jornalista investigativo, escritor, poeta, e adepto do humor. Também conhecido como “Jornalista do Sertão”. seupedro@micks.com.br