sexta-feira, 9 de maio de 2008

As criaturas de barro de Zé do Carmo, por Marco Albertim

Marco Albertim (*)



Cangaceiros com asas de anjo. Anjos com fuzil no ombro, revólveres na cintura, balas, punhal comprido; carregando alforje e chapéu de couro na cabeça. O que há de comum sob o chapéu, é que tanto o arcanjo quanto o cabra têm cabelos finos, desalinhados, no molde da cabeça torneada. Assim os fez, os faz, o ceramista Zé do Carmo. Ele desceu da Rua da Conceição, uma rua urbanizada, com luzes ralas a partir das cinco horas da tarde; desceu para o Baldo do Rio, de onde tirou o massapé para moldar suas criaturas diabo-angélicas. Foi há sessenta anos, em Goiana, Zona da Mata de Pernambuco.

Saíra antes, junto com a mãe, do Abrigo da Misericórdia, nos fundos da igreja do mesmo nome. Moraram ali filho, mãe e pai, por mercê do padre. O pároco os queria sob o altar, para fazer de Zé do Carmo um carmelita; para cuidar da horta, dos jardins, do pátio de entrada, com piso de cimento. A velha fora servil e zelosa. Com a morte do pai, Zé do Carmo e a mãe saíram do abrigo. O negrinho nascera feito um curumi miúdo, cresceu doentio; com ungüentos da horta e promessas ao santo, curou-se de malária, de impaludismo. Daí em diante chamaram-no Zé do Carmo, para tributar à santa que o socorrera.

O moleque não tinha olhos para os santos, inda que se impressionando com a coragem de São Jorge matando o dragão. Absorveu a quietude dos olhos de cada anjo na abóbada da igreja, injetou-a no rosto de Corisco, o cangaceiro malvado. Corisco ganhou asas de anjo nas mãos de Zé do Carmo; nas mãos, nas espátulas e no cinzel dele. Lampião, o Virgulino, Zé do Carmo o manteve com os óculos redondos, de aro fino; os cabelos descidos sobre os ombros, e um par de asas do tamanho das espáduas do cangaceiro.

Zé do Carmo é o único ceramista do Brasil que apetrechou anjos com armas do cangaço; que deu feições de anjo a Lampião e seus homens. “O cangaceiro era um retirante, tangido pela seca; não tinha terra nem boi pra criar. Foi ser cangaceiro pra num morrer de fome, com raiva dos coronéis.” A casa onde mora é sua; é a primeira, a única que conseguiu comprar com o dinheiro do comércio de estatuetas rebeldes. Quando saíra do abrigo, foi morar na beira do rio junto a pescadores de caranguejo, gente tão pobre quanto ele. Com a morte da mãe, juntara algum dinheiro e comprou a casa da rua da Conceição.

A fama de sua cerâmica rompeu os limites do município. Tornou-se, ele, objeto da curiosidade de antropólogos, sociólogos. Gilberto Freyre visitou-o ao lado de uma comitiva de curiosos. “Não tem medo de contrariar a Igreja com suas estátuas profanas!?” – perguntaram-lhe. Ele deu de ombros, do mesmo modo quando o padre o quisera catequizar para que usasse a batina dos carmelitas. Zé do Carmo não é um rebelde, respeita a autoridade do clero e não se subordina. Os traços de suas imagens são tão simples quanto os de um retirante da seca; não têm rancor nos olhos, não falam, mas olham oblíquas, pedindo explicação para o rumo de suas vidas.

A casa de Zé do Carmo é ateliê e loja. Mora com a mulher, nunca teve filhos e não dá explicação. Passou dos 70 anos. Foi robusto, hoje é magro, tem no rosto o perfil de um corvo; na cor e nos traços. O ateliê já foi muito visitado, fizeram-lhe romarias; gentes de outros Estados. Ele passa o dia sentado numa cadeira, na loja, ao lado do ateliê. A mulher, Rosa, não se mete no comércio, não dá palpites na criação do ceramista. Ele a provisiona do necessário para os dois. Não há luxo na casa. Os móveis são mantidos luzidios, na cor negra da cabiúna. Xícaras, pratos, talheres, tudo combinando com o formato cilíndrico da mesa, do armário, das cadeiras. Ao meio-dia, da cozinha desprende-se o cheiro do feijão na panela. O ambiente cobre-se do cheiro da comida. O casal não usa mais panelas ou alguidares de barro. O carvão sob as trempes, substituiu-o por um fogão a gás. Não se queixa da vida, Zé do Carmo. Guarda nos olhos uma tristeza inconfessa, raramente sorri. Se o incitam, solta uma conversa confusa; o propósito é instilar mistério no ato de moldar estatuetas ecumênicas. Fala, sem dar substância à palavra, na “transfiguração” pela qual passou, quando distinguira no cangaceiro um querubim.

O pequeno comércio que trouxe turistas a seu ateliê, sumiu-se com a rua vazia. Ele assunta sozinho, lembrando-se de diálogos remotos. O asseio de seu ateliê, de sua loja, atrai para um serão sestroso. Zé do Carmo é o mesmo, suas estátuas se confundem com a paisagem já conhecida de todos.

Incitaram-no a visitar o papa, dar-lhe um presente; inda que com o risco de excomunhão. Ele moldou um cangaceiro tão puro quanto Gabriel, o anjo bom. Daria, ajoelhado, rogando-lhe a bênção, a João Paulo II. O pontífice veio a Recife, o arcebispo Dom Hélder Câmara fez as vezes de cicerone. Uma multidão aclamou o santo padre. O cardeal Marcinkus, desconfiado, não se impressionou com os gritos do povo; passeou seus olhos por cima dos fiéis, ignorando a oferenda pagã a caminho; pagã e de boa-fé.

Dom Hélder viu Zé do Carmo entre a multidão ruidosa, chamou-o para mais perto. Quando o embrulho com a estatueta foi desfeito, perguntou, inquieto, temendo por certo a proibição do cardeal Marcinkus: “O que é isso, rapaz? Cangaceiro com asas de anjo!?”

A estatueta ficou mas não foi levada para Roma. Zé do Carmo, pressionado pela devoção da multidão, balbuciou rezas sem nunca tê-las na cabeça. Não se aproximou do papa, não o permitiram. Voltou para casa oculto entre os romeiros, sem falar no assunto.

(*) Escritor e jornalista

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