segunda-feira, 12 de maio de 2008

Mães, por Urariano Mota

Urariano Mota (*)



Para o domingo de maio, pensei em escrever alguma coisa sobre as mães. Pensei e me vi diante de um grande ridículo, porque sabia me encontrar diante do precipício do sentimentalismo. Pois esse é o dia em que o afeto paga o seu tributo ao mercado, em que a mercadoria ganha o símbolo de um amor filial. Então pensei em escrever algo que dignificasse a caricatura do sentimento, algo como a mulher cubista, para assim expressar o lado materno, oculto, de toda mulher que amamos. Aquele estremecimento que nos dá quando tocamos a mão da companheira, a maneira como nos aninhamos em seus braços, quando em seu colo buscamos abrigo. Pensei. Mas ainda assim o risco, o ridículo, o abismo, era grande. Então preferi falar pela voz de outros, em outras narrações escritas por um sujeito que leva o meu nome, numa tentativa de contornar o abismo. É o que faço a seguir. Se não virem nestas linhas nada que valha a pena, ouçam pelo menos Ingênuo, de Pixinguinha. Eu o escuto agora, e dessa forma me abrigo do ridículo.

“Mas o gênio desse povo também quer vingança. Num dia desses na feira, um desses homens sem memória do carinho viu a um canto essas flores. Estranhas, múltiplas, muitas, pequenas, uma nuvem de petalazinhas brancas. Já as havia notado um dia, lembrava-se. Então perguntou à vendedora o nome. E ela, com estranheza diante de tão reles ignorância: - “Isso é carinho de mãe, o senhor não sabe?” Então o homem em seu coração teve um baque. Alheou-se da feira e olhou o mar. “Carinho de mãe...” . Olhou o mar e olhou o horizonte. Olhou a feira e não mais viu pessoas. Como nuvens de petalazinhas brancas sentiu em sua cabeça os dedos da mulher a quem amou, quando ainda lhe pedia o peito, no trem, nos bondes, no ônibus. E sentiu a sua mão gorda, e sentiu o seu leite farto, quente, de coragem e generoso. E viu que as flores, sintomaticamente, se encontravam ao lado de frutas, de feijão, de carne, da água, à vista do mar e do sol. Então sentiu que esse carinho é fundamental, é essencial, como as coisas elementares do existir. E lhe deu, numa pancada, uma falta sem remédio.”

“- Ela foi a primeira mulher que eu amei. E esse amor tem tudo. Tem história, tem verdade, tem enredo, tem até tragédia que não acabou em sangue. Pra minha infelicidade. Se ela tivesse morrido, se ela tivesse sido morta, acho que pra mim ficava mais fácil. Mas ela me abandonou, sabe? Eu sou filho de uma puta que me deixou. Sabe? Ela foi covarde, ela não enfrentou a barra de um corno que ela botou em meu pai. Ela foi covarde e egoísta, esquecida. Me deixou sem nem olhar pra trás. Notícia, bilhete? Nada. Sabe? Não me venham pedir postura de herói. Aqui! Eu sei do que a sobrevivência é capaz. Mas não é isso. Ela era uma mulher muito bonita. Uma mulher. Bonita. Na minha infância mais remota, quando eu fui igual a todo o mundo, quando eu tive mãe, sabe?, eu tive a sorte de receber carinho. Foi a minha primeira consciência de intimidade. Os seus afagos calavam aqui dentro de minhas entranhas. E o problema é que para essa mulher eu nunca pude retribuir o carinho. Hoje eu posso dar, e essa mulher eu já não tenho. Não sei se ela está velha, se está tuberculosa, se morreu, eu não sei. Na verdade, sinto que não estou muito empenhado em saber. Bom é ficar com ela na lembrança. É uma força que chega pra mim disso. Quem teve na infância mãe com fama de puta, sabe que tudo é enfeite de latão. É tudo moeda de lata. Deus, heroísmo, decência, é tudo lata pintada de amarelo.”

“Foi em manhã como a desse domingo. De repente, assim como a água que chega sem aviso, um portador trouxe para Dona Maria, como prova de que seu marido não fugia aos deveres do matrimônio, quando tudo era aflição, eis que um anjo lhe traz uma nota de duzentos cruzeiros. Sim, o menino lembra, uma cédula que trazia no verso o Grito do Ipiranga. E o que ele mais lembra: mal o portador se ausentou, Dona Maria puxou o filho para o quartinho-célula. E o que ele mais lembra, fundamente, como a sua mais íntima e guardada pele: Dona Maria pulava, rolava pela cama, e sua alegria era tamanha que chorava de felicidade. Nos olhos vermelhos, nas bochechas subitamente róseas, a alegria dela não se continha, pronta a gritar, a anunciar para a rua: - Hoje temos almoço! Hoje temos galinha!”.

“Dona Maria, no tempo em que era Maria, era uma mulher agradável, bela. Samuel teria dela a lembrança, alguns anos mais tarde, da mulher que ela era quando ele tinha oito anos. Por quê, não o sabia. Era como se ela fosse lembrada somente em sonho, assim como se faz uma recusa com a vista e a percepção ao corpo tragado pela doença de alguém que se ama. Nessa imagem de sonho ele a veria de corpo oculto por névoas, rosto sem boca, apenas olhos cabelos e fronte da mulher com quem se comunga uma irresistível e mansa intimidade. Ele estava nela, ela era dele, e isso era uma afirmação do humano que ele era. Eram anos que lhe chegavam como de harmonia. Com efeito, a mulher que o perturbava agora, em pose de suave megera, era uma mulher que nascida para o amor, para a dignidade e respeito que se exige no amor, fora brutalizada pelo casamento, transformada em fêmea de parir. Dissemos casamento, mas nem essa violentação cerimoniosa ela alcançou, pois fora jogada a um ajuntamento carnal com um macho bêbado. A sua mãe e seu pai foram amigados, palavra frágil, pois nem amigos foram nos anos em que viveram juntos, juntos, como dizer?, habitantes inimigos sob um mesmo teto.

Os anos que Samuel tomava como harmônicos, e com isso ele apenas lembrava os anos em que seu corpo mal se deslocara do colo morno de Maria, foram os anos em que ela resistira no físico e no ardor às imposições de fazê-la um animal de parir. Foram os anos em que ela, trabalhando como cobradora de ônibus, fora uma pessoa. Isto quer dizer que ela comia o alimento ganho com suas próprias e gordas mãos. Mãos quentes, coração bravo. Ela então possuía os mesmos um metro e cinqüenta e cinco, mas punha saltos altos, e sua pele tinha cor e era fresca, os seios tinham farto leite para a maternidade, e nisso um só ponto em sua graça e elegância ela não decrescia. A sua beleza era a exuberância, chegando à pletora, de vida. Não era ela feita de traços suaves, como ele a idealizaria na lembrança. Ela era bela do que nela se movia. Os seus minutos tinham a duração da intensidade.

A uma pessoa assim, com essa ânsia de ultrapassar o instante, a uma pessoa com essa exuberância, de impulsos e abandono à vontade dos impulsos, a vida mata na altura dos trinta anos, ou prolonga os dias retirando-lhe o que é belo, numa dilação desonrosa. Pessoas assim lembram cordas tensas de um violão que se romperam e foram emendadas, cujo som agora emitido não é mais música. O destino lhes dá uma segunda chance, mudando o transbordamento em pântano. A torrente que não mais é, estagna, vira lama. Compreendê-las nesta segunda fase é o mesmo que um analise esta sombra.

Maria perdera o encanto dos seus rompantes. Tornara-se viúva quando se libertara da ditadura do marido. Para quê? - ela ganhara a liberdade quando não mais podia fazer uso dela. Estava adaptada, queremos dizer, a sua beleza se curvara à sobrevivência da frouxidão. De Maria, pessoa bonita desde o nome, ela se transformara em dona Maria, gorda, chorosa e brincalhona. Uma viúva, sem a hipocrisia e mau gosto das que se vestem de preto quando ainda são fêmeas disponíveis, mas uma viúva que era um galho retorcido, que se consumira nos deveres da maternidade. Quem a imagina nessa altura de sua vida, aos cinqüenta e três anos, cai em erro se lhe põe uns óculos, curva na espinha, costurando. Maria vive de sua arte na cozinha, fazendo bolos e doces, que entrega para a venda a meninos da vizinhança. A isto ela acrescenta o oferecimento de calças, camisas e blusas a moradores do subúrbio, que lhe compram a prestação. Ela se diz, ‘o marido se foi, que descanse’. No dia em que viu o caixão do falecido na sala, teve um crise de riso, que sufocou a custo, para não explodir na mais libertadora gargalhada. Ao espanto e censura dos vizinhos, ela respondeu:

- É que eu olho pra ele e só penso que ele está se fazendo de morto. Mas vai morrer assim mesmo - e redobrou o riso.

Nesse dia Samuel descobriu uma nova faceta em sua mãe. Depois do enterro, ao voltar para casa, e ver os cômodos ocos, como sempre acontece quando uma casa perde um dos seus moradores, ela lhe disse:

O que você quer comer? Vamos tratar de comer. A partir de hoje o meu filho é quem manda.

E abraçou-o. E chorou, sentida, desvalida e calorosamente, como a Maria dos seus oito anos. Samuel percebeu, no íntimo, que as lágrimas de sua mãe caíam sobre o seu ombro como as lágrimas de uma mulher infeliz que encontrou o seu amor. Ele a sentiu em seu peso e sua graça, graça pela solidariedade que o invadiu, peso no entanto por saber que não poderia suportar tamanha esperança.

Esta era a mulher que o destronava”.

“- Porra! - ele gritou, com os braços erguidos. - Por que nunca me disseram isso antes?

Então ele compreendeu que o bolo de feijão dado e feito por sua mãe, com farinha pesada e composta no afeto, era um valor que rajadas de balas não sacodem. Então ele soube, por aquele bolo de feijão, que dona Maria era um valor mais alto, que apostilas e livros não lhe disseram. Então ele soube, por sua mãe, que a réstia de sol era fundamental, única, inexcedível. Então ele soube que as poucas alegrias que um dia ele dera àquela senhora gorda eram o melhor prêmio, eram o seu maior galardão, a sua ordem ilustre da jarreteira. Então ele redesenhou um avião em papel usado em padaria e o mostrou à costureira e a viu pegar aquela obra com um orgulho mais fundo que o escultor do Moisés não conseguiu romper de suas entranhas. E ele ousou ver aquelas pernas rombudas de varizes. Beijou-as nos pontos mais nodosos. Então ele sentiu o gosto e a textura do chá de capim-santo que recebeu na boca nos dias em que teve febre. Pois o mundo, e o valor do mundo, lhe veio todo no sentido único do gosto. O tato, a visão, o cheiro, o que ele ouvia, o imaginado, o lembrado, o apenas entrevisto na vizinhança do sentido, passavam pelo crisol do gosto. O sabor essencial do ovo cozido, água e sal somente. Então ele viu que esse gosto na sua vida havia sido corrompido. As receitas para a adição de molhos e temperos, o concerto sinfônico, as fórmulas da mais-valia, nada disso tinha mais valor que o ovo com sal e as veias a arrebentar da mulher gorda na ladeira. Então ele a viu costurando sua camisa azul escura, da mesma cor do espaço noturno onde ele viajava, montado num corpúsculo que vinha a ser o dorso de sua mãe gorda. Que concentração e apuro ela punha na máquina, alinhavando, acariciando as costuras, bicuda, compondo a camisa da cor que ela nunca lhe dera! Aquele bico, aquelas bochechas infladas ele conhecia: ela estava zangada, aborrecida. Então, correndo suas varizes, beijando-a, e com as lágrimas a lhe correrem no rosto, em razão de todo o passado de estupidez, ele que certa vez quis fazer daquela natureza a repetição da Mãe revolucionária, ele que a censurava, que tinha repugnância do seu desconhecimento das tarefas necessárias para a construção do socialismo, ele se disse num jorro, “Estúpido! mil vezes estúpido! - Hei, é isso o inferno? Ter sido tão estúpido, é isso o inferno? Saber o erro máximo que se deu e sabê-lo definitivamente sem remédio... Isso é o inferno! Para e por todos os séculos estúpido”, então mais uma vez Samuel correu-a, afogou-a de beijos, e os beijos tinham o calor de suas lágrimas no rosto na praça, porque só então ele a compreendia: Dona Maria era uma senhora digna, corajosa, agindo como era possível ser naquele meio e naquele tempo. “Estúpido”, e mais Samuel a beijava, ao saber que a gorda estava costurando a sua mortalha com a determinação de quem faz o enxoval do último homem de sua vida. Então ele, repositório daquele amor, daquela despedida, soube o que era o contrário do beijo - era o que ele havia feito, quando dera as costas à Dona Maria. Então ele ergueu mais alto os braços e gritou:

- Viva dona Maria!

- Cala a boca, filho-da-puta.

- Respeitem a minha mãe, fascistas!

Então Samuel, embora sabendo que o tempo lhe era adverso, não porque 4 minutos de sua última vida corriam no passado, mas porque não havia tempo entre o espaço do seu braço e a arma nas costas, pois tinha à sua frente animais com sede e engatilhados, embora tendo essa clara consciência, Samuel soube que mais vale na vida a afirmação do beijo. E soube, ah como soube, na força com que sonhou em pegar na arma, com o peito ardendo ele soube que o amor é revolucionário. A mão que se dirigiu à arma teve a serena convicção de que o mundo só vale a pena se nele couber o amor que beija as pernas estragadas. Que o respeito ao que se ama é o ponto do ponto do ponto”.

Feliz Pixinguinha para todos os filhos da mãe.

(*) Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

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