quinta-feira, 22 de maio de 2008

Um certo João que eu conheci, por Risomar Fasanaro

Risomar Fasanaro (*)



Era março de 1975. Eu trabalhava como redatora no jornal “Diário de Osasco” que hoje foi rebatizado “Diário da Região”. Quando cheguei, a recepcionista me entregou um livro que chegara pra mim, pelo Correio.

Naquele jornal, além de reportagens, entrevistas e crônicas eventualmente eu comentava livros. E recebia muitas obras, principalmente do Ênio Silveira, da Editora Civilização Brasileira. O livro era “Leão de Chácara”, e ao abri-lo encontrei uma dedicatória: “Para Risomar Fasanaro que é de Osasco e a que, diretamente ou indiretamente, o clima deste livro pertence. Ofereço, João Antônio. Rio, 6 de agosto, 1975.

Aquela dedicatória despertou minha curiosidade: o que teria aquele livro a ver com Osasco? Quem seria aquele João Antônio? A cada um que chegava, eu perguntava, mas ninguém no jornal sabia de quem se tratava. Uma vergonha, hoje reconheço, porque, àquela altura, seus livros já eram editados na Argentina, Espanha, Alemanha, Venezuela, e Tcheco-Eslováquia. Seu primeiro livro “Malagueta, Perus e Bacanaço” recebera O Prêmio Jabuti de revelação de Autor, da Câmara Brasileira do Livro de 1963, o Prêmio Jabuti de melhor livro de contos da Câmara Brasileira do Livro de 1963, e o Prêmio Prefeitura Municipal de São Paulo de 1965.

Li o livro e logo me apaixonei pelos textos do Autor. Comentei com meu amigo Carlos Marx e logo depois ele descobriu de quem se tratava. Para minha surpresa, embora ninguém do jornal o conhecesse, a família dele morava em Presidente Altino, no mesmo bairro e na mesma rua em que ficava a redação do “Diário”: Rua Sanazar Mardiros.

Um dia, diante de minha curiosidade e insistência, meu amigo me levou até a casa dos pais do escritor, mas ele morava no Rio e só eventualmente vinha visitar os pais.

Presidente Altino se diferencia do restante da cidade. Suas ruas e praças são muito arborizadas e ainda guardam algumas características do que era a cidade no início do século XX. Algumas residências ainda datam daquela época. Não me causaria surpresa se, passando à noite, por uma de suas ruas, ainda hoje encontrássemos pessoas conversando em cadeiras nas calçadas.

Era ali em uma casarão antigo, cercado de muitas árvores e flores que vivia a família do autor de “Leão de Chácara”. Havia tanta vegetação que ele ficava meio escondido, e me lembro de que ficamos na varanda, conversando com pai dele.

Naquela época, editávamos “Veredas” uma revista cultural em que publicávamos contos, poesias, artigos sobre cinema, teatro, livros, e entrevistas com pessoas ligadas à cultura.

Um dia ficamos sabendo que ele viera do Rio visitar a família e se dispusera a conhecer o Grupo Veredas. Minha expectativa era grande, pois àquela altura havia lido todos os seus livros publicados, além de alguns contos nas publicações da época como “Escrita” e outras.

Eram umas duas da tarde quando chegamos à casa de Carlos e Irene, sua mulher na época. Sentamos em círculo, todos no chão da sala, inclusive ele, e ali ficamos por aproximadamente umas seis horas ouvindo-o contar a história da imprensa nanica no Brasil, desde o surgimento do “Pasquim”, jornal que ele considerava o marco de uma revolução na imprensa. De vez em quando tomávamos um suco, comíamos uns salgadinhos, e ninguém arredava o pé da sala. Todos hipnotizados pela fala dele.

Depois daquele dia, sempre que vinha a Osasco, ele entrava em contato conosco e íamos à Vila dos Artistas, a alguma atividade cultural e, também, ele esteve na festa de inauguração do Espaço cultural “Sentinela”, ocasião em que fui escolhida “de livre e espontânea pressão”, para falar sobre sua obra. Missão difícil, pois ele fazia parte da platéia. Em uma outra ocasião, fomos com ele ao museu “Dimitri Sensaud de Lavaud”. E me lembro bem dos seus olhos pequenos, muito negros, muito vivos e brilhantes, encantado ouvindo a história do Primeiro vôo da América do Sul que tinha acontecido em Osasco. Saído do quintal daquele chalé.

Às vezes ele vinha e não dava tempo de nos encontrar, mas sempre conseguia trocar algumas palavras com o Carlos, que depois nos transmitia suas notícias. Era um dos maiores incentivadores tanto do “Grupo Veredas” quanto da revista, além de um leitor fiel, para nosso orgulho.

Talvez uns dois anos antes de morrer, ele escreveu uma carta contando que andava deprimido. Carlos me contou e ficou de passar o endereço dele no Rio para eu lhe escrever, mas os dias foram passando, a carta não foi escrita, e até hoje me penitencio por isso.

Alguns anos depois, em outubro de 1996, ao abrir o “Jornal da Tarde” me deparo com aquela triste notícia: “morre no Rio o escritor João Antônio” e o autor da matéria, cujo nome não registrei, narrava o calvário que ele vivera nos últimos anos: sem dinheiro, recorrera aos amigos e depois, sem ter como pagar as dívidas acumuladas, envergonhado fugia de todos. A matéria dizia mais: que aquele escritor, um dos maiores do país, alguém que nada ficava a dever a Machado de Assis, a Lima Barreto, a nenhum outro grande nome da nossa literatura, vivia bêbado. Acho que não precisava tudo aquilo, porque ele não tinha culpa. Um país que tem um artista com aquele talento, deveria ter dado a ele condições de viver com dignidade. Talvez se ele tivesse encontrado o apoio que merecia, não tivesse terminado daquele jeito, e até hoje estivesse entre nós.

Li a matéria muito revoltada, sem conseguir conter as lágrimas. Revivi os passos daquele homem de porte tão digno, sempre tão elegante, tão gentil que conheci aqui em Osasco. Relembrei aquele encontro com o Grupo Veredas, de suas palavras sobre Lima Barreto, o autor ao qual dedicava todos os seus livros, tamanho era o amor que lhe dedicava. Essas cenas passaram pela minha cabeça como um filme, e não vi nenhuma semelhança com a pessoa que o jornalista descrevia.

Liguei para os amigos que também já sabiam da notícia, e que estavam tão tristes e revoltados quanto eu.

Que país é este que desperdiça seus talentos de maneira tão cruel? Que país é este em que a cultura, a arte, não encontram espaço; para as quais nunca há verbas disponíveis, pois o dinheiro a elas destinado é, quase sempre, a sobra do que produz votos? Que país é este que abandona seus talentos à própria (má) sorte?

Aquela forma de morrer me dava a dimensão real do que significa a arte, a cultura em nosso país: João Antônio foi encontrado morto em seu apartamento. Calcula-se que o corpo ali ficou quinze dias, e já se encontrava quase em estado de decomposição. Nem mesmo o porteiro do prédio notou sua ausência. O que não deveria nos causar surpresa, pois se nem o país, nem o Rio, a cidade que ele adotara como se fosse seu filho, percebera que um dos seus maiores escritores vivia sob o signo da angústia, da tristeza, da solidão por que esperar que o porteiro de um prédio notasse a ausência daquele homem mal vestido, mal calçado, deprimido?

E para mim o que ficou foi a imagem de alguém que quando entrava em um ambiente o enchia de luz com sua presença, sua sabedoria, seu carisma, sua simplicidade. Alguém de quem Lima Barreto se orgulharia se soubesse o quanto ele o admirava.

(*) Risomar Fasanaro é jornalista, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

Nenhum comentário: