segunda-feira, 30 de março de 2009

O céu por limite, por Pedro J. Bondaczuk

Pedro J. Bondaczuk (*)



“Os aniversários (principalmente os meus) sempre me empolgaram. Não adianta os pessimistas virem me dizer que cada novo ano que eu vier a completar devo, na verdade, lamentar, porquanto minhas possibilidades de deixar o mundo pela porta da morte aumentam. Não deixa de ser verdade, claro. Mas precisavam lembrar isso justo hoje?! Por que dar ouvidos a esses chatos, cassandras de mau-agouro, que vêem, em tudo e em todos, apenas o lado negativo? Eles que procurem outro para aborrecer”.

Foi com essas palavras que abri minha crônica de 20 de janeiro passado, quando completei mais um ano de vida. Gosto, de fato, de aniversários. Eles sempre me empolgaram. Ainda mais quando se trata do de um empreendimento que nasceu sob indisfarçável ceticismo (inclusive meu), com muita gente opinando que não iria dar certo. Deu! E como!

É com entusiasmo e, mais do que isso, com incontida euforia, que registro o terceiro aniversário do nosso Literário (com o perdão da rima, que foi involuntária). Tudo isso?! Como o tempo passa! A exclamação surge sincera e espontânea. Parece que foi ainda ontem que o José Paulo Lanyi me falou do projeto, que recebi com reservas (não minto), e que a editora do Comunique-se, Miriam Abreu, me convidou para ser o editor.

Embora não manifestasse abertamente, me assustei com o convite. Contudo, disfarcei, fiz um certo ar blasée, montei uma pose de auto-confiante e aceitei de pronto, sem relutâncias, a convocação (encarei-a dessa forma). Um bom soldado nunca foge à luta Por que não fugi? Por duas razões. A primeira, pelo respeito e carinho que sempre tive pelo Comunique-se, pelo Lanyi e principalmente pela Miriam. O segundo? Bem, o segundo é porque sou atrevido mesmo como ninguém e não costumo correr de desafios. Como bom gaúcho, gosto de “pelear”.

Minha primeira reação, contudo, longe “dos holofotes”, ou seja, das vistas alheias, foi de desânimo, principalmente quando vários ilustres jornalistas, da chamada “grande imprensa”, que haviam se comprometido com o projeto antes desse ser posto em execução, declinaram, na hora agá, do convite oficial. Convidei outros, não menos ilustres, que aceitaram de imediato. “Agora vai!”, exclamei.

Novos obstáculos. Vários dos novos convidados escreveram duas ou três colunas apenas e logo desistiram, pretextando “falta de tempo”. “Será que vai mesmo funcionar?”, perguntei, incrédulo, aos meus botões. E tome novos convites. E o quadro de colunistas foi, outra vez, reformulado. Dos vinte originais, sobraram, até hoje, apenas, quatro “heróis da resistência”: Fábio de Lima, Nei Duclós, Solange Sólon Borges e Urariano Mota. Quatro, convenhamos, que valem por quatrocentos milhões!!

Quando menos esperava, eis que completamos o primeiro ano de existência. Ainda assim, eu continuava cético com o projeto. Cético, mas determinado a não deixar a peteca cair. No segundo ano, novas desistências, novos convites e o Literário, aos poucos, foi se consolidando. Chegamos ao segundo aniversário já bem mais estáveis e minha dúvida inicial, quanto à viabilidade do empreendimento, começou a se dissipar, embora não de todo.

E eis que amanhã completaremos três anos no ar, sem nenhuma falha (a não ser aos sábados, domingos e feriados), sempre com cinco textos inéditos (o que não é para qualquer um). Não conheço nenhum espaço na internet com essa periodicidade e sempre, sempre, com crônicas, contos, poesias etc. novos e originais! Vocês conseguiram, seus danados! O mérito não é meu, logicamente, é dos que escrevem para este espaço.

Devo, sobretudo, reconhecimento aos inúmeros colaboradores espontâneos, que nunca me deixaram na mão, nos momentos mais críticos, quando tudo conspirava para determinar nosso fracasso. E não foram poucos, minha gente. Foram, até a data de amanhã (cuja programação já está fechada), 331 jornalistas e estudantes de jornalismo que nos honraram com sua prestimosa colaboração! É pouco? Claro que não!

Na impossibilidade de citar todos, nominalmente, cito os doze com maior participação e a respectiva quantidade de textos publicados: Eduardo Oliveira Freire (38), Luís Delcides R. Silva (27), Cecília França e Rafael Coelho (26 cada), Samuel Costa e Renan Oliveira (23 cada), Vitor Orlando Gagliardo (22), Sayonara Lino (21), Letícia Nascimento e Eduardo Ritschel (20 cada), Rodrigo Capella (19) e Flávio Tiné (15).

Abraço esses doze “heróis da resistência” e, com isso, espero estar abraçando a todos os 331 ilustres, participativos e dinâmicos colaboradores do Literário. Agradeço, também, aos tantos que se dispuseram a comentar os textos publicados, notadamente à médica Mara Narciso, figura que se tornou querida pelos colunistas pela sua constante, lúcida, pertinente (e sempre bem-vinda) presença em nosso espaço..

Diante desses números todos, e neste momento em que partimos para o nosso quarto ano de existência, meu sentimento em relação ao Literário muda da água para o vinho. Transforma-se do ceticismo inicial em absoluta fé no sucesso do empreendimento. Para mim, agora (parodiando o nome de um famoso programa de TV comandado pelo saudoso J. Silvestre), “o céu passa a ser o limite”.

(*) Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com

quarta-feira, 25 de março de 2009

Poetas velhos e cansados, por Fábio de Lima

Fábio de Lima (*)



Quando os ponteiros dos relógios brasileiros marcarem 0h00 do dia vinte e sete de março de dois mil e nove (assim, escrito!), o espaço Literário, do Comunique-se, completará três anos de vida. Eu, Fábio de Lima, o contador de histórias, o escrevinhador de doces delírios, estarei dormindo. Durmo cedo, 21h00/22h00, e acordo cedo, 5h00/6h00, de segunda a domingo – hábito antigo que já percorre três décadas.

A data cairá na sexta-feira. Dia de trabalho árduo e de finalização de uma semana cansativa, como costumam ser as semanas do povo. Nenhuma festa envolvendo os colunistas do Comunique-se será feita. Churrasco, feijoada, dobradinha – nada. Coquetel com roupas elegantes, maquiagens mais carregadas, bebidas – não, esqueçam. Abraços, beijos, apertos de mãos – nada disso. Sorrisos, cumprimentos, tapinhas nas costas – nada, nada e nada.

Outros escritores, como eu, estarão dormindo quando o relógio da Igreja da Sé abençoar essa sexta-feira. Alguns estarão acordados escrevendo ou com insônia revirando sobre a cama. Os poetas estão ficando velhos, mesmo sem querer. Os textos guardados nas gavetas do mundo ou espalhados por cantos diversos carecem de carinho.

Sexta-feira, por desígnios do destino, não estarei em São Paulo, meu refúgio de cidadão brasileiro. Estarei em Fortaleza. Trabalhando sim, mas vivendo a vida também. Na sexta-feira esse meu texto já terá sido lido por quem desejou fazê-lo e, como não está em papel, nem para embrulhar peixe ele servirá mais. Nem para isso. O mundo não tem mais tempo para os poetas e só por esse motivo, único e exclusivamente, eles se cansam e envelhecem.

André Falavigna (BARBA!), estará vivo ou morto na sexta-feira? Nei Duclós pensará no que ao olhar-se no espelho depois de levantar-se? Celamar Maione colocará qual brinco antes de sair de casa? Daniel Santos comerá o que de café da manhã? Evelyne Furtado fará para quem seu primeiro telefonema? Marcelo Sguassábia olhará quantas vezes no relógio ao cair da tarde? Risomar Fasanaro terá tempo de encontrar sua amiga? Urariano Mota irá conseguir terminar de ler aquele livro sobre ufologia?

Caros amigos leitores do Comunique-se, e Pedro Bondaczuk? O que será que o homem que administra esse espaço Literário, com toda maestria do mundo, já faz três anos, estará fazendo na sexta-feira? E a Laís de Castro? E o Talis Andrade? E a Mara Narciso? E a Solange Sólon Borges? E o Eduardo Murta? E a Marleuza Machado? E o Seu Pedro – gente, onde estará e o que estará fazendo esse sertanejo defensor das letras e da poesia?

Na sexta-feira, às 19h57, estarei sentado na areia de uma praia cearense olhando, com olhos de enxergar, o mar. Estarei pensando o que seria do oceano sem cada gota d’água. Não sei onde vocês estarão e nem o que estarão fazendo nesse exato minuto da sexta-feira, vinte e sete de março de dois mil e nove, mas eu estarei feliz por ser quem eu sou e por sermos quem nós somos. Poetas velhos e cansados? Não, o tempo é uma ilusão. Somente poetas. Poetas e mais nada. POETAS!

(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Tenha paciência, meu!, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



- Já terminou o banho?
- Arãn!
- Não deixa essa roupa suja no chão então! Coloca no cesto...
- Tá!
- Eu estou falando sério, Reginaldo! Eu não sou tua empregada...
- Mas eu respondi que coloco.
- Conheço bem este teu ar irônico!
- Mas...
- Mas nada... Oh meu Deus! Olhe o que fizeste? Olha pra o chão?
- O quê?
- Molhou todo o chão!
- Foram só uns pinguinhos...

- Quantas vezes eu vou ser obrigada a dizer para te secares dentro do box do banheiro, hein? Olha as tuas costas também! Toda molhada...
- Eu seco!
- Claro que tu vai secar! Pode pegar o pano lá no tanque...
- Estou indo, calma!
- Depois vem jantar... Porque não quero reclamação que a comida está fria...
- Mas eu nem falei nada!
- Mas pensou...
- Esse pano?
- Pode ser! Ali tem mais...
- Tá bom!

- Meu Deus! Hoje está difícil! Vou ter que tirar esse tapete daqui da sala mesmo...
- Por quê? Está tão bonito!
- Se eu não tirar, vou ter que pelo menos cortar as pontas...
- Por quê?
- Ainda pergunta! Pode me dizer como é que tu consegue enrolar a ponta do tapete toda vez que passa por ele, hein? Pode me explicar?
- Sei lá!
- Eu sei! É arrastando esses pés! Que preguiça para caminhar...
- Acho que...
- Acha nada! Vai lá te servir... Não se esquece de tampar as panelas...
- Putz!
- O que foi, Reginaldo?
- Deixei cair arroz no chão...
- Na cozinha limpa, criatura! É muita de falta de consideração!
- Mas foi um acidente!
- Sai pra lá que eu limpo! Saí...
- Calma! Que coisa... Até perdi a fome com essa tua irritação... Vou me deitar.
- É o melhor que tu fazes!
- Boa noite!
- Te some da minha frente! Me faz esse favor...

Minutos depois. Na cama...

- Acordado ainda?
- Sim! Maria Clara...
- Também!
- Também o quê?
- Quem é que vai conseguir dormir com uma televisão neste volume!
- Bah... Desliga então!
- Lógico que eu vou desligar!
- Desliga para ficarmos no escurinho...
- Pra quê?
- Vem cá, vem!
- Saí para lá!
- Aí amor...
- Saí pra lá! Não estou a fim de nada contigo hoje! E passa esse edredom para cá que estou com frio!
- Mas...
- Mas nada! Saí pra lá! E outra: se tu me destapar esta noite tu vai ver...

Ao amanhecer...

- Maria clara!
- Oi amor! Estou na cozinha...
- Ah tá!
- Não levanta ainda! Estou chegando...
- O que é isso?
- Um cafezinho na cama para o meu amor! Dá um beijinho de bom dia! Smack! vjjj!
- Smack! vjjj! Bom dia!
- Preparei um café com tudo que gostas! Olha...
- Acordou inspirada, hein? Gostei da surpresa!
- Arãn! Acordei me sentindo outra mulher!
- Que bom!
- Tem mais...
- Ah é! O quê?
- Olha...
- Hum... Calcinha nova, hein? Hum... Tá querendo, né? Vem cá, vem!
- Calma, amor!
- Calma por quê?
- Não posso! Veio...
- Veio o quê?
- Ora, Reginaldo! O quê? Estou naqueles dias! A minha menstruação...

(*) Jornalista

terça-feira, 17 de março de 2009

Retribuição, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)

Em uma pescaria.

- Bah! Estava precisando dar comida aos peixes. A minha mulher quer me matar...
- Capaz! Por quê?
- Vou te contar a estória: eu estava sozinho em casa. A Cleuza tinha ido a um instituto de beleza. Olhava um jogo na Sky, quando escutei um barulho, como se algo se despedaçasse no chão...
- E aí?
- Aí eu corri na cozinha e encontrei no chão, em caquinhos, um vaso da Cleuza. Herança de família, mas nada de valor. Sabe dessas coisas que mulher se agarra sem explicação?

- Sei!
- Pois é! Era a Cleuza e o tal vaso...
- Mas quebrou muito? Não dava para colar?
- Mas que jeito! O troço se despedaçou de uma maneira, mas de uma maneira, que eu iria passar um ano e não iria conseguir juntar as partes...
- Tá! Mas como ele caiu no chão?

- Rapaz! Não é que foi a praga do cachorro. Um passarinho entrou na cozinha por uma janela que estava aberta e não conseguia sair. O cachorro enlouqueceu tentando pegar o bicho. Pulou pra cá, pulou pra lá e bateu na mesa de jantar, onde estava o tal do vaso, aí se deu o estrago...
- Tá! Só não entendi uma coisa ainda: por que a tua mulher está braba contigo se foi o cachorro?
- Calma! Vou chegar lá...
- Continua!

- Bom! Como eu não tinha mais nada a fazer, apenas limpei os “restos mortais” do vaso do chão e esperei a Cleuza chegar...
- Que ficou uma fera?
- Mais que isso!
- E aí?
- Aí ela chegou, conversou um pouco e foi na cozinha. Só ouvi um grito! Daí ela veio bufando para o meu lado...
- E aí?

- Aí logicamente já veio cheia de perguntas: “como tinha quebrado?” “Quem tinha quebrado?” E coisa e tal...
- E tu?
- Eu assumi o estrago! Disse que tinha batido na mesa, tentando tirar o tal passarinho para rua e ele caiu.
- Tu estás louco homem? Por que tu fizeste isto?
- Retribuição a um amigo! Outro dia eu rasguei uma almofada da Cleuza com as unhas dos pés e o cachorro assumiu!

(*) Jornalista.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Mulheres de Chico, por Evelyne Furtado

Evelyne Furtado (*)



Nenhum homem canta melhor as mulheres do que Chico Buarque de Holanda. Chico cantou e canta todas nós em todas nossas matizes. De Carolina a Geni. Da Rita à mãe do Meu Guri. Encontro-me em seus versos, banhada pelo luar ou usando açúcar e afeto para você parar em casa.

Sou Joana Francesa e a dona do Folhetim. Já fui quase uma das Mulheres de Atenas e olhei nos seus olhos para ver o que você dizia. Já vi a Banda passar cantando coisas de amor. Até vi Boi Voador. Vi-me sem um pedaço de mim e nunca uma saudade doeu tanto.

Fui Maria, a princesa, o brinquedo e uma das três noivas do cowboy. Também fui deixada em uma ladeira do Bonfim e não devolvi seu Neruda, que você não me emprestou. Cantei Olé Olá e esperei o samba para não chorar.

Queimei meus navios e já não sabia mais nadar, quando tuas mãos ainda estavam em meu seio e era hora de partir. Como se “Eu Te Amo” tem uma das mais lindas letras da Música Popular Brasileira? Para mim a mais bonita sim. Mas nada que Chico escreveu chega longe da beleza. Nada! Nem mesmo o sonho medonho, pois se encerra ternamente com um apelo para o aconchego.

E fico por aqui, lembrando quantas vezes falei que o meu amor tem um jeito manso que é só seu, que me deixa louca, quando me beija a boca. Lembro ainda nas outras tantas que pedi para que o menino viesse sem fantasia, pois da noite para o dia ele não cresceria. Nem eu, eternamente a menina de onze anos como no dia em que vi aqueles olhos tímidos no saguão do aeroporto aqui em Natal.

Obs.: Este texto nasceu depois de assistir mais uma vez o musical Mulheres de Holanda. Ousei brincar com as letras do poeta genial e querido Chico Buarque. Com sua licença, moço dos olhos do mar.

(*) Cronista e poetisa em Natal/RN

terça-feira, 3 de março de 2009

As Pretinhas do Congo, por Marco Albertim

Marco Albertim (*)



A água do rio Goiana não refletiu as cores da bandeira d’As Pretinhas do Congo; não neste carnaval. Justo no ano em que o bloco conseguiu dois mil reais da Fundarpe, para mostrar sua devoção à iabá que a protege. Trinta negros, entre homens e mulheres, a maioria moços, usando roupas vermelhas e negras, puseram-se entre o rio e a casa. A bandeira, abrigada na sala, apoiada na parede feito um altar; a ponta, em cima, alcançou o telhado. Valdo, o pescador, pusera-a ali para, no culto ruidoso que faz em homenagem ao orixá, aumentar a força da divindade; sentir, ele, os benefícios no fundo do jereré içado do rio. Pusera-a antevendo siris, camarões, pitus, peixes miúdos. Fora tecelão o negro de 71 anos. A fábrica fechou, faliu, ele virou pescador, forçou-se dentro de uma canoa, no manejo do remo, inda que a usina tenha tingido a água com a calda da cana.

Ele grita com as moças que chegam atrasadas, grita e tira do bolso uma bisnaga com perfume, o extrato comprado na feira; espirra-o nas costas, no pescoço de cada uma. Às quatro da tarde, o cheiro do azedo massapê, vindo do canavial, ainda invade o casario. As negras, perfumadas, não sentem mais a calda que mata o cundunda; magras, esquecem a fome; montadas em cambitos, com força para se espremerem na rua estreita, de ladeira de subida. Há uma grávida, de rosto amarelo, os dentes expondo a alegria; a prenhez inchou-a nas pernas; ouvirá aplauso e ninguém para fazer pouco de seu rosto impaludado.
- Todo mundo em forma! – grita Valdo.

O rosto do negro é tisnado de sinais sob os olhos; o chapéu de feltro, preto, é o mesmo que usa o ano inteiro; camisa vermelha, calça preta, combinando com o traje das moças.

Valdo passa o ano sem gritar. No domingo de carnaval, desde o distante ano 51, grita feito um capitão-do-mato. Não foi escravo, mas o pai por certo fora vergastado pelo capitão do banguê.
- Vixe...! Seu Valdo tá é estressado! – diz a moça que segura a bandeira.

É uma negra com dezessete anos; veste-se como as outras; no penteado, dividira os cabelos no meio da cabeça, curvando-o para cima, para os lados, endurecendo-o com o laquê. No aplauso, não terá ninguém para fazer pouco do artifício na cabeça crescida pelos cabelos. É nova no estandarte, não sabe que está escrito 1936, o ano da fundação; sabe que carrega o distintivo de sua raça, do que assuntaram na seroada da calçada, olhando a cumplicidade muda do rio. Sabe que a bandeira é verde, vermelha, tem letras amarelas e listras brancas, como um dia será sua rotina cinzenta.

Trrrrrrr... Valdo trina o apito; ele mesmo puxa o canto. Não é um frevo, lembra um samba de feitio primitivo, de quem se orgulha de ter posto a nação para o povo apreciar.

“Quem disse que as Pretinhas não saía...” – Não é um tropeço na concordância, é uma minúcia que dá conta do paradeiro do autor; acomoda-se aos rostos magros, à frouxura das roupas; minúcia plástica.

A nação põe-se a andar, sem olhar para o aumento das águas com as últimas chuvas. A vegetação vinda da camboa longe dá sinal de que há vida no rio; menos mal. Algum dia não haverá despejo de calda.

As negras repetem o canto. Dona Biu chegou por último, levantando a barra da saia para não embeber-se nas poças. É a única que usa blusa e saia brancas, prateadas. Põe-se atrás do rei e da rainha. Vende fumo num banco de feira, usa-o no seu cachimbo bronco, mesmo no desfile da nação; só tira-o da boca quando repete o canto, segurando-o com a mão levantada, perto da boca. É a mais velha. O capitão-do-mato não a repreende, ele mesmo um useiro do fumo de rolo.

Pulam, dançam. O capitão não se permite um pulo. Respeitam-no porque seu passo é de comando. O rei e a rainha, de amarelo, não dançam; andam ouvindo a corte sacudindo o maracá, balançando o colar branco, o turbante da mesma cor. Não reparam no cortejo, posto que os súditos, reverentes, já os têm sob cuidados.

O pano branco sobre o ombro de Valdo não compõe o personagem, inda que não seja estranho a ele nem à corte. Não o mostra como uma prerrogativa, pendura-o como um direito do ofício de recompor uma nação, dotar-lhe do traço comum, avivar-lhe a memória. Ele aviva a sua removendo o suor da testa, depressa para o pano não toldar a sonoridade do canto; também usa um colar, duas enfiadas com contas de couro; o traço distingue-o dos outros.

Tem dez filhos, ele. Nenhum se mostra no desfile, e todos o seguem misturando-se ao povo nas calçadas.

Na rua Direita, o palanque fora erguido em frente à prefeitura; é uma rua larga, a vitrine dos mais de quatrocentos anos de Goiana. O locutor anuncia a chegada das Pretinhas. Há pouca gente. Anuncia secretários, prefeito; com pompa na voz, não conhece a história do bloco, sua síntese com cultos iorubanos; refere-se a Heleno, o negro fundador da nação Pretinhas do Congo. Tem afetação na voz, fala descombinando-se do feitio despojado de Valdo, de dona Biu, da porta-estandarte que, a sós com ele, vexar-se-ia. Cinco horas, fim da tarde, a nação se desfaz. Valdo mantém-se à frente. Na terça viajam para se mostrarem noutro município. Descem para o baldo do rio, de onde vieram. Se não chover, haverá a lua para alumiar-lhes a seroada. Valdo tomará cachaça como chefe de uma nação que obteve o respeito do minguado povo que o aplaudiu. Ele, os filhos, dona Biu; e Quitéria, a porta-estandarte.

(*) Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.