terça-feira, 3 de março de 2009

As Pretinhas do Congo, por Marco Albertim

Marco Albertim (*)



A água do rio Goiana não refletiu as cores da bandeira d’As Pretinhas do Congo; não neste carnaval. Justo no ano em que o bloco conseguiu dois mil reais da Fundarpe, para mostrar sua devoção à iabá que a protege. Trinta negros, entre homens e mulheres, a maioria moços, usando roupas vermelhas e negras, puseram-se entre o rio e a casa. A bandeira, abrigada na sala, apoiada na parede feito um altar; a ponta, em cima, alcançou o telhado. Valdo, o pescador, pusera-a ali para, no culto ruidoso que faz em homenagem ao orixá, aumentar a força da divindade; sentir, ele, os benefícios no fundo do jereré içado do rio. Pusera-a antevendo siris, camarões, pitus, peixes miúdos. Fora tecelão o negro de 71 anos. A fábrica fechou, faliu, ele virou pescador, forçou-se dentro de uma canoa, no manejo do remo, inda que a usina tenha tingido a água com a calda da cana.

Ele grita com as moças que chegam atrasadas, grita e tira do bolso uma bisnaga com perfume, o extrato comprado na feira; espirra-o nas costas, no pescoço de cada uma. Às quatro da tarde, o cheiro do azedo massapê, vindo do canavial, ainda invade o casario. As negras, perfumadas, não sentem mais a calda que mata o cundunda; magras, esquecem a fome; montadas em cambitos, com força para se espremerem na rua estreita, de ladeira de subida. Há uma grávida, de rosto amarelo, os dentes expondo a alegria; a prenhez inchou-a nas pernas; ouvirá aplauso e ninguém para fazer pouco de seu rosto impaludado.
- Todo mundo em forma! – grita Valdo.

O rosto do negro é tisnado de sinais sob os olhos; o chapéu de feltro, preto, é o mesmo que usa o ano inteiro; camisa vermelha, calça preta, combinando com o traje das moças.

Valdo passa o ano sem gritar. No domingo de carnaval, desde o distante ano 51, grita feito um capitão-do-mato. Não foi escravo, mas o pai por certo fora vergastado pelo capitão do banguê.
- Vixe...! Seu Valdo tá é estressado! – diz a moça que segura a bandeira.

É uma negra com dezessete anos; veste-se como as outras; no penteado, dividira os cabelos no meio da cabeça, curvando-o para cima, para os lados, endurecendo-o com o laquê. No aplauso, não terá ninguém para fazer pouco do artifício na cabeça crescida pelos cabelos. É nova no estandarte, não sabe que está escrito 1936, o ano da fundação; sabe que carrega o distintivo de sua raça, do que assuntaram na seroada da calçada, olhando a cumplicidade muda do rio. Sabe que a bandeira é verde, vermelha, tem letras amarelas e listras brancas, como um dia será sua rotina cinzenta.

Trrrrrrr... Valdo trina o apito; ele mesmo puxa o canto. Não é um frevo, lembra um samba de feitio primitivo, de quem se orgulha de ter posto a nação para o povo apreciar.

“Quem disse que as Pretinhas não saía...” – Não é um tropeço na concordância, é uma minúcia que dá conta do paradeiro do autor; acomoda-se aos rostos magros, à frouxura das roupas; minúcia plástica.

A nação põe-se a andar, sem olhar para o aumento das águas com as últimas chuvas. A vegetação vinda da camboa longe dá sinal de que há vida no rio; menos mal. Algum dia não haverá despejo de calda.

As negras repetem o canto. Dona Biu chegou por último, levantando a barra da saia para não embeber-se nas poças. É a única que usa blusa e saia brancas, prateadas. Põe-se atrás do rei e da rainha. Vende fumo num banco de feira, usa-o no seu cachimbo bronco, mesmo no desfile da nação; só tira-o da boca quando repete o canto, segurando-o com a mão levantada, perto da boca. É a mais velha. O capitão-do-mato não a repreende, ele mesmo um useiro do fumo de rolo.

Pulam, dançam. O capitão não se permite um pulo. Respeitam-no porque seu passo é de comando. O rei e a rainha, de amarelo, não dançam; andam ouvindo a corte sacudindo o maracá, balançando o colar branco, o turbante da mesma cor. Não reparam no cortejo, posto que os súditos, reverentes, já os têm sob cuidados.

O pano branco sobre o ombro de Valdo não compõe o personagem, inda que não seja estranho a ele nem à corte. Não o mostra como uma prerrogativa, pendura-o como um direito do ofício de recompor uma nação, dotar-lhe do traço comum, avivar-lhe a memória. Ele aviva a sua removendo o suor da testa, depressa para o pano não toldar a sonoridade do canto; também usa um colar, duas enfiadas com contas de couro; o traço distingue-o dos outros.

Tem dez filhos, ele. Nenhum se mostra no desfile, e todos o seguem misturando-se ao povo nas calçadas.

Na rua Direita, o palanque fora erguido em frente à prefeitura; é uma rua larga, a vitrine dos mais de quatrocentos anos de Goiana. O locutor anuncia a chegada das Pretinhas. Há pouca gente. Anuncia secretários, prefeito; com pompa na voz, não conhece a história do bloco, sua síntese com cultos iorubanos; refere-se a Heleno, o negro fundador da nação Pretinhas do Congo. Tem afetação na voz, fala descombinando-se do feitio despojado de Valdo, de dona Biu, da porta-estandarte que, a sós com ele, vexar-se-ia. Cinco horas, fim da tarde, a nação se desfaz. Valdo mantém-se à frente. Na terça viajam para se mostrarem noutro município. Descem para o baldo do rio, de onde vieram. Se não chover, haverá a lua para alumiar-lhes a seroada. Valdo tomará cachaça como chefe de uma nação que obteve o respeito do minguado povo que o aplaudiu. Ele, os filhos, dona Biu; e Quitéria, a porta-estandarte.

(*) Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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