quarta-feira, 30 de julho de 2008

"Felicidade Clandestina" (*), por Risomar Fasanaro

Risomar Fasanaro (*)



Quando se fala em 1968 o que vem à cabeça da maioria das pessoas é repressão, tortura, exílio, ato institucional n° 5. Enfim...só se pensa em tristeza. Mas 68 não foi só isso. Havia toda uma juventude envolvida com o que se passava no país, mas que como toda juventude queria aproveitar a vida: cantar, dançar, namorar, enfim...Viver. E isso a ditadura de nenhum país conseguiu impedir.

A Coordenadoria de Relações Internacionais da Prefeitura e o Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco realizaram uma semana de debates sobre a Greve de Osasco, o movimento estudantil, a guerra do Vietnã e a participação das mulheres em 1968.

Por isso prefiro falar do lado feliz daquela época. Não tínhamos computador, nem celular, nem IPOD, nem nada do que encanta os jovens de hoje, mas com nossos pobres mimeógrafos a álcool (quando alguém tinha), produzíamos textos que rodavam pelas escolas, pelas fábricas, pelas faculdades, sempre por debaixo dos panos e um único gravador de fita mini-cassete, que passava de mão em mão para gravar as músicas que participariam dos festivais. A gente nem conhecia o dono do gravador, mas ele chegava às nossas mãos. Isso poderá dar às gerações de hoje o grau de confiança e de solidariedade que nos unia. Mais do que isso, atesta o quanto éramos felizes.

Aquele foi um período de grande efervescência cultural. O movimento político não se dava de uma forma monocórdica, em que só se tratava de militância; ele estava profundamente envolvido com a literatura, com o cinema, com a música, com o teatro. E ao mesmo tempo que se lia os textos de Marx, de Marcuse, de Regis Debret, lia-se muito Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, fazia-se questão de ver Terra em Transe de Glauber Rocha, de conhecer todas as canções de Chico, de Caetano, de Gil, de Sérgio Ricardo.

..

Acredito que nos seria impossível resistir às perdas que sofríamos todos os dias, dos nossos amigos, dos nossos professores; impossível resistir ao desespero dos que eram mortos, à saudade dos que partiam para o exílio, se não fôssemos ancorados pelo trabalho daqueles que produziam cultura, dos que produziam arte.

O que seria de nós se não fôssemos embalados pelo canto do Chico Buarque, pelos sons e cores da Tropicália, pela voz de Elis, pelas rodas-de-capoeira, pelas cirandas pernambucanas, pela pílula anticoncepcional, que nos liberou sexualmente, e por tudo que a cultura nos proporcionou naquele período, e que foi de certa forma nossa resposta revolucionária ao que eles nos impunham?

Eles, os que aplicaram o golpe, pensaram que estavam fazendo uma revolução. Que pena... não perceberam que na verdade, não se faz uma revolução apenas com armas, com fardas, atos e decretos. As armas, os decretos, as torturas instauraram apenas o medo, a revolta, o rancor. Revolução foi o que fizemos. Com pensamento, sentimento, criatividade, solidariedade e resistência.

Não saberia dizer (não tenho conhecimento para isso) se as revoluções, frutos da realidade que nos cerca, brotam lentamente na alma das pessoas, germinam, crescem, dão flores e frutos, ou se surgem de repente, sem razão nem perdão e nos levam a mover montanhas. Se são algo maior que nós. E isso, me desculpem os generais, aquela revolução existiu, mas não na direção que eles queriam e sim exatamente no sentido oposto.

E quero aqui reiterar: fomos felizes sim. Muito felizes! Nunca se viu peças de teatro com tamanha riqueza de texto, de montagem, de tudo. Relembrar Os Mutantes com Rita Lee vestida de noiva, a banda toda com o rosto pintado demonstra que a novidade, a vanguarda de hoje surgiu com a nossa geração.

E havia também o Pasquim o jornal que revolucionou a imprensa brasileira. Era impossível não vibrar com as entrevistas que eles publicavam. Ler o Fradim do Henfil, as tiras da Graúna era esquecer qualquer tristeza. Era impossível não gargalhar ao ler no “Última Hora” O Festival de Besteiras que Assola o País, do Stanislaw Ponte Preta. Não, 1968 não foi só tristeza, não foi só tortura, morte, exílio. Foi principalmente carnavalização. Um carnaval de resistência, pois não aceitamos passivamente o açoite dos algozes.

Depois de 68 nunca mais nem o mundo nem o país foram os mesmos. E foi graças à “divina loucura” de Zé Celso, de Glauber Rocha, de Leila Diniz, que hoje estamos aqui.

E não é possível esquecer o chazinho na casa do amigo, em um domingo chuvoso com a voz de Violeta Parra cantando Gracias a La Vida indefinidamente na vitrola. Se não fosse tudo isso, o que teria sido nossa vida durante a ditadura?!

(*) Título de um conto de Clarice Lispector.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Temores, por Solange Sólon Borges

Solange Sólon Borges(*)



Há mágoas que chegam
com odores de estagnação,
recobertas com véus
póstumos e nódoas.
São ofensivas:
comandam a nau capitânia;
todos os amores e ódios
desterrados são potências.

(*) Jornalista, dedica-se a diversos gêneros literários. Entre outras atividades, atua em alguns programas “O prefácio”, sobre livros e literatura. Um deles é o programa Comunique-se, levado ao ar pela TV interativa ALL TV (2003/2004). Apresentou, também, “Paisagem Feminina”, pela Rádio Gazeta AM (1999), além de crônicas diárias na Rádio Bandeirantes e na Rádio Gazeta — emissoras das quais foi redatora, repórter, locutora e editora.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Amor bandido, por Pedro J. Bondaczuk

Pedro J. Bondaczuk(*)



O amor, para mim, sempre foi (e creio que sempre será) um insondável mistério. Por mais que eu tente racionalizar esse sentimento, sempre esbarro em exemplos, em histórias, em situações que teimam em fugir de qualquer racionalidade e até do bom-senso. Quase nunca (eu diria que nunca mesmo) existe uma lógica que nos leve a nos apaixonar por determinada pessoa, e não por outra que, aparentemente (ou verdadeiramente), lhe seja até superior em diversos predicados, como inteligência, pureza, caráter etc.

Não raro temos a oportunidade de amar alguém de imensa beleza – que nos ama e que até nos atrai fisicamente – mas que, para nós, não é a companhia que procuramos. Falta-lhe aquele “algo mais” (que sequer sabemos definir o que seja) que a torne a cara metade que tanto buscamos (e, às vezes, não encontramos nunca).

Todavia, o amor, na verdade, não é para ser explicado ou entendido, pois não tem explicação. Tem é que ser vivido! Cabe-nos a irrestrita entrega a esse misterioso chamamento, sem questionarmos a razão dessa irresistível e mútua atração. Isso, em termos, claro. Creio que em determinados casos, é melhor resistir do que depois lamentar.

Uma das coisas que não entram na minha cabeça, por mais que me esforce, é o chamado “amor bandido”. Ou seja, o fato de alguém se apaixonar por determinada pessoa que não tem nada, absolutamente nada a lhe oferecer, sequer a desejável reciprocidade e, mesmo assim, considerá-la, ou, pior, identificá-la como seu “príncipe” (ou princesa, no caso dos homens) encantado, a despeito de não ter coisíssima alguma que encante.

Tenho um exemplo desses na minha convivência cotidiana. É a doméstica Jesolina, nordestina, mulata, de uns 30 anos de idade (mas com aparência de ter muito mais), que é amante de um bandido, condenado por assalto a mão armada, reincidente desse crime, e que cumpre longa sentença de prisão em uma penitenciária daqui da região de Campinas.

Trata-se de mulher honestíssima, pela qual coloco a minha mão no fogo, sensível, batalhadora, que há anos presta serviços aqui em casa, onde sempre mereceu nossa irrestrita confiança e sincera estima. Como gostaria que Jesolina tivesse melhor sorte! Quanta gente, mundo afora, que poderia lhe dar vida de rainha, está à procura de alguém com metade dos seus predicados, e não encontra! É uma judiação o que ocorre com ela.

Pergunto-me, com grande freqüência, o que leva essa mulher batalhadora a encarar sua vida com tamanha resignação e continuar amando esse companheiro, irresponsável e irrecuperável, com o qual, certamente, jamais poderá levar uma vida em comum normal, que apenas lhe deu um filho, hoje com sete anos de idade, e nada mais?

Nos dias de visita, sem falhar nenhum, às quintas-feiras e domingos, lá está Jesolina, invariavelmente, na portaria do presídio, submetendo-se às vexatórias, porém necessárias revistas, para visitar o bandido, que sequer valoriza seu sacrifício, sua lealdade, fidelidade e dedicação e, não raro, a ameaça de morte, por questão de ciúmes.

E ai de quem falar mal do seu amado na frente dessa mulher apaixonada! Ela, que normalmente é um doce de pessoa, alegre, otimista e descontraída (apesar de todo esse problema que enfrenta), vira uma fera. Defende seu homem com unhas e dentes, com paixão e sentimento, como se fosse um nobre, um príncipe, um deus, sei lá! Definitivamente, não entendo.

Sei que nada, absolutamente nada no mundo é mais amargo e doloroso do que o drama de um amor que chega ao fim. É uma situação conflitante em que sempre alguém sai ferido. Dói demais, por exemplo, ver que os beijos, as carícias e as palavras meigas e deliciosas que nos eram destinadas tempos atrás, têm por alvo, agora, uma outra pessoa.

Não se pode nunca afirmar, é verdade, que se trate de situação sem volta. O amor perdido pode ser recuperado. Mas as marcas dessa eventual separação não desaparecem. Permanecem para sempre a envenenar o relacionamento que, dificilmente, voltará a ser o mesmo de antes. Mas será que isso é pior do que a escolha de alguém que não tem nada a nos oferecer e que, pelo contrário, arruína definitivamente a nossa vida com sua simples existência? Sei lá! O amor... ah, o amor! Que baita mistério que é...

(*) Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Tolerância zero, por Aliene Coutinho

Aliene Coutinho(*)



Todos os dias, ele acorda no mesmo horário, toma banho, faz a barba e vai ao trabalho, onde cumpre “britanicamente” as obrigações. Nunca cometeu excessos, só o de ser comedido e perfeccionista. Naquela sexta-feira, ele bem que resistiu ao convite de esticar até um barzinho. Nunca foi dessas coisas, é o tipo casa-trabalho, mas era aniversário de uma colega muito especial, a única na repartição que não tirava sarro da cara dele, que dividia a mesa no almoço, e que lhe sorria com cumplicidade ao longo do dia, quando algum engraçadinho resolvia encher seu saco o criticando por deixar tudo tão arrumadinho, ou pela roupa impecável, onde até os jeans tinham vinco.

Ele não podia perder a oportunidade de ficar ao lado dela por mais algumas horas. Quase conseguiu sentar-se ao lado dela, mas no empurra-empurra, acabou ficando na outra ponta da mesa do boteco barulhento. Não ia dar nem para puxar conversa. Pediu uma limonada suíça, enquanto o resto da turma, inclusive a aniversariante, começou a se encher de choppe. E vieram os brindes, e um pedido dela: “Oh, João, só hoje e por mim, bebe uma cervejinha com a gente”. Quem resiste a isso? E João atendeu. Foram um, dois, três, quatro choppes. E ele que nunca havia bebido, mudou por completo.

Começou a falar alto, contou uma piada sem graça e tirou a moça para dançar. Detalhe: o bar não tinha pista de dança. Mas, ela foi. E ao som ambiente de um sambinha, colou o corpo no dele, e lhe provocou arrepios. Ele a apertou com mais força. Ela deixou. E ficaram assim, como se não houvesse mais ninguém por perto. João estava feliz. Se soubesse que uns copinhos de bebida iam fazer aquele milagre, já teria saído com as aqueles chatos e metidos do trabalho há mais tempo. Nas nuvens, perguntou se podia levar a moça em casa. E mais uma vez ela topou. Foi à mesa, pegou a bolsa, e deixou todo mundo de boca aberta, quando disse que estava indo embora com ele. E os dois saíram de mãos dadas.

A cabeça de João rodava. Só podia ser por ela, pelo cheiro dela, pelo som da voz e das risadas dela. No carro, ligou o som e ela ouviu com surpresa “Se” de Djavan. Nem acreditou que ele pudesse gostar de quem era, para ela, o maior cantor dos últimos tempos. Os dois cantarolavam a música quando viram a poucos metros na frente uma blitz do Detran. Mais uma operação bafômetro de fim de semana. Ele havia lido nos jornais que desde que implantaram a Lei Seca isso havia se tornado comum, mas isso até então não o preocupava em nada.

Em dezesseis dias do “tolerância zero” para dirigir depois de beber, duzentos motoristas do DF foram pegos em flagrante e tiveram a carteira de habilitação suspensa. Tudo passou muito rápido em sua cabeça. E ele rezou para que não fosse parado. Mas não teve jeito. Abordado, apresentou os documentos, e só ao descer do carro percebeu que mal conseguia ficar em pé. No teste do bafômetro a sentença: 0,59 mg de álcool por litro de sangue, o suficiente para que João perdesse o direito de dirigir por um ano, tivesse o carro recolhido e fosse levado para delegacia. E tudo que ele lembra é do sorrisinho dela, aquele que ele tanto conhecia, ao entrar no táxi e sumir noite adentro, sem dizer ao menos “até segunda-feira!”.

(*) Jornalista e professora de Telejornalismo

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Eu ainda tenho namorado, por Aliene Coutinho

Aliene Coutinho(*)



Assim que o vi achei que era um índio perdido na cidade – para ser mais exata, na praia. Tinha aquele bronze avermelhado, cabelos pretinhos e lisos, olhos meio puxadinhos, boca pequena. Nem era alto, nem baixo. Nem magro, nem gordo. Era básico, pelo menos para meus conceitos. Troquei olhares, puxei conversa e descobri que de índio só a herança genética, no mais era urbano, universitário. Era de exatas, mas escrevia poesias e adorava literatura.

Aquele encontro em um verão no início dos anos 80 foi apenas o primeiro de uma série. Posso dizer que amadurecemos juntos. Vimos e participamos das mudanças ocorridas em cada um de nós e até mesmo no País. Estávamos juntos na campanha pelas eleições diretas, votamos juntos para Presidente, e também para eleger o primeiro governador do Distrito Federal. Presenciamos a poucos metros do Congresso Nacional o badernaço contra o Plano Cruzado II, que deixou um rastro de violência na Capital, e tantos outros fatos históricos.

Tudo isso, sem falar das nossas histórias pessoais. As formaturas, os primeiros empregos, o aluguel, os amigos em comum, as noites de farra, as discussões, as quase separações, as brigas que todo mundo tem. O morar junto sem pensar no amanhã, mas cheio de compromisso e respeito. Os filhos que vieram depois de anos de convivência, e o pedido de casamento mais depois deles ainda. Duas vidas que seguiam paralelas, mas que de tão perto uma da outra parecia uma só.

Existiam defeitos, imperfeições, crises de choro, de angústia, de solidão. Vontade de jogar tudo para o alto. Momentos para se perguntar se poderia ter sido diferente. Éramos humanos. Gente igualzinha a qualquer outra. Gente que nunca está satisfeita. E os anos foram passando, e um dia quando olhei para trás vi que os calendários se amontoavam em nossa mesa e cama. Estávamos juntos há 24 anos.

Há quem diga que somos quase raridade. Não sei. Aprendi, com o mestre tempo, que não adianta fugir dos problemas, e nem trocar de marido diante de cada um deles. Aprendi que por mais feio que o diabo pareça, se a gente pode contar um com o outro, e olhar um para o outro e vê que ainda resta amor, aí, sim, tudo vale à pena. Até declarar, via internet, que ainda comemoramos o Dia dos Namorados e que eu, pelo menos até esta data, me sinto tão namorada quanto naquele primeiro encontro.

(*) Jornalista e professora de Telejornalismo

sábado, 19 de julho de 2008

Reverso, por Aliene Coutinho

Aliene Coutinho(*)



Quero instigar-me,
colocar-me ao avesso,
parar de medir atitudes
e atos.
Nem menos, nem mais.
Quero ultrapassar limites,
enxergar mais que um palmo,
pisar fundo, estragar o sapato.
cuspir no chão
e nem esperar secar.
Chutar o pau da barraca,
não engolir mais sapos.
Vomitar desejos
e fazê-los realidade.
Olhar no espelho
e se ver sem medo,
nem vontade de
mudar.
Andar na rua, sem rumo.
Ter cabeça de vento
e ser boca aberta
por que não?
Chegar onde nem preciso
E ir além do que conheço.
Apertar a mão do estranho,
sorrir para quem nunca vi.
Dizer sim e não,
e o que der vontade.
Fazer tudo ao contrário
...reviV

(*) Jornalista e professora de Telejornalismo

quarta-feira, 16 de julho de 2008

A ruiva do bar, por Celamar Maione

Celamar Maione(*)



Terminei meu plantão e entrei no boteco, doido por uma cerveja. Trabalhei o sábado inteiro tirando foto de cadáver .Estava puto com a minha vida de merda e com a calhordice humana. Tenho seis irmãos. Sou o filho caçula, o único solteiro. Voltar pra casa significa aturar a úlcera crônica do meu pai e a artrose da minha mãe. Só bebendo pra esquecer.

Pedi uma cerveja ao Antonio. Quando saboreava meu primeiro gole, uma ruiva franzina, cabelos escorridos, olhos de beagle e rosto afilado, entrou e seguiu em direção ao balcão. Pediu um maço de cigarro. Tirou do bolso o dinheiro amassado e jogou pro Antonio. A ruiva me intrigou. Gosto de desvendar mistério. Me aproximei. Ela cheirava a colônia ordinária, misturada com cigarro. Aquele cheiro de vagabunda me deixou com tesão. Resolvi brincar.
- Cigarro faz mal a saúde, gata!.
- Vai se foder, cara! Te perguntei alguma coisa?

Deu um pinote e saiu sem olhar pra trás. Fiquei com cara de babaca. O Antonio riu de peidar. Sentei no meu canto e bebi outro copo. Não era o meu dia de sorte. Decidi acabar com a garrafa e pegar meu ônibus pra Nilópolis. Chegaria em casa, tomaria um banho quente e assistiria uma merda qualquer na tv até pegar no sono.

Pensava na minha cama quentinha, quando a ruiva voltou. Ela sentou-se na minha frente e começou a chorar. Fiquei sem ação. Não sabia se coçava o saco, se pedia outra cerveja, se perguntava o nome dela. Me enrolei todo. Juro. E ela abrindo o berreiro. Nestas horas o Antonio sabia o que fazer. Era um psicólogo de boteco. Trouxe outra cerveja. Enchi um copo e estiquei minha mão pra a ruiva.
- Bebe e pára de chorar, porra!

Ela entornou tudo de uma vez. Arrotou na minha cara, tirou a garrafa da minha mão e encheu o copo de novo. Peguei de volta.
- Peraí, me diz primeiro o que tá acontecendo. Quer se matar?
- Quero.
- Por quê?
- Meu namorado terminou comigo. Tá apaixonado por outra.
- Quantos anos você tem?
- Vinte.
- Tá de sacanagem? Com essa idade e chorando por causa de homem?
- E tem idade pra chorar? Que teoria babaca, cara! Vai me dar sermão agora?
- Tá cheio de homem carente por aí, precisando de um colo – brinquei
- Eu quero ele.
- Ele fode gostoso?
- Caramba, você é mais grosso do que eu. Vou nessa me atirar na frente de um carro.
- Peraí. Não faz drama . Senta.

Segurei o braço da ruiva, aflito. Eu atraia morte. “Vou dar um porre nessa aprendiz de suicida“ – pensei. Bebemos oito garrafas de cerveja. Ela ficou alegrinha. Ria de qualquer besteira que eu falava. Uma da madrugada. A essa hora não voltaria mais para Nilópolis. Joguei:
- E ai, ruiva? Onde você mora?
- Pô eu moro com o meu ex. Mas ele não deve tá e eu não tenho a chave.
- O que você acha da gente dormir num motel aqui na Mem de Sá?
- É um convite?
- Se você quiser.
- Vamos nessa.

Agarrei a ruiva pelo ombro e lá fomos nós desafiando a madrugada. Entramos num motelzinho ordinário, como ela. Subimos por uma escada de madeira barulhenta. Abri a porta. O cheiro de mofo me deu azia. Escancarei a janela cheirando a cupim. A ruiva sentou na cama. Perguntei, tirando a calça:
- Quem vai tomar banho primeiro?
- Vai você.
- Fica quieta aí, hein?! Não vai fazer merda!
- Pode deixar!
- Posso te fazer uma pergunta?
- Faz.
- Tá menstruada?
- Não.Por quê?
- Não transo com mulher menstruada.
- E quem disse que a gente vai transar?
- É, não vai.

Tomei um banho frio. Esfreguei o sabonete quase arranhando meu corpo. Acho que eu tinha esperança de me livrar das mazelas daquele dia com água e sabão. Saí do banheiro sem roupa. A ruiva foi tomar banho. Voltou nua. Muito magra. Branca demais. Pálida. Perdi o tesão. Mas não podia recusar carne fresca. Não tem coisa pior para um macho do que ser chamado de broxa. Fechei os olhos e pensei na peituda da minha rua que não me dava bola. Deu certo. Foi rapidinho. Peguei no sono com a ruiva reclamando:
- Igual a todos os homens. Fode mal. Vira pro o lado e dorme. Babaca.

Acordei com o estômago reclamando e o hálito fedegoso. Sete horas. Olhei para o lado e não vi a ruiva. Tomei uma chuveirada. Peguei minhas coisas e o maço de cigarro dela em cima da cadeira. O cara da portaria não a viu sair. Caminhei pelas ruas com um mau pressentimento. Quando entrei na Gomes Freire vi uma pequena multidão olhando pro céu. Era a ruiva, do alto de um prédio, ameaçando se jogar. Me aproximei de um cara vestido com roupa de trocador.
- Há quanto tempo ela tá aí?
- Sei não. Cheguei agora. Tão comentando que ela foi corneada. Acho que o namorado é aquele ali.

Vi o cara conversando com um policial. Fui até eles e me identifiquei. O rapaz era o namorado da ruiva. Chamei o colega para um canto e comentei:
- Se o cara tá aí, ela não vai se jogar
- Como é que você sabe? Conhece a moça?
- De vista. Quando ela sair do terraço, dá o maço de cigarro pra ela. Diz que foi o, diz nada não. Tchau.

“Caramba” - pensei. “Fui pra cama com a mulher e nem sei o nome dela.”. Andei até a Central do Brasil e peguei meu ônibus pra casa. Sentei no último banco. Olhei pela janela e respirei o ar poluído. O céu azul me deixou esperançoso. Me deu vontade de cochilar. Recostei no banco e quando tava quase dormindo, escutei alguém gritando:
- Perdeu, cara! Perdeu!. Dá o celular, anda!. Vou te furar todo! Porra, passa logo!

Dois homens roubavam os passageiros. Quando chegou a minha vez foi tudo muito rápido. Prendi a respiração, peguei minha pistola e mirei no assaltante com o trêsoitão:
- Vamos ver quem vai pro inferno primeiro!?


(*) Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Demolição, por Solange Sólon Borges

Solange Sólon Borges (*)



É o alívio

quando saio

de águas profundas.


O que parece paixão

poderá ser passional

ou químico,

no momento em que

chegar à plena superfície.


Ao se abrirem

os cravelhos enrijecidos,

o rangido feérico

das adriças

o alertará:

foi iniciado o processo

de decantação.

Eu sei,

encontro-me sob escombros.


* Jornalista, dedica-se a diversos gêneros literários. Entre outras atividades, atua em alguns programas “O prefácio”, sobre livros e literatura. Um deles é o programa Comunique-se, levado ao ar pela TV interativa ALL TV (2003/2004). Apresentou, também, “Paisagem Feminina”, pela Rádio Gazeta AM (1999), além de crônicas diárias na Rádio Bandeirantes e na Rádio Gazeta — emissoras das quais foi redatora, repórter, locutora e editora.

Demolição, por Solange Sólon Borges

Solange Sólon Borges (*)



É o alívio

quando saio

de águas profundas.


O que parece paixão

poderá ser passional

ou químico,

no momento em que

chegar à plena superfície.


Ao se abrirem

os cravelhos enrijecidos,

o rangido feérico

das adriças

o alertará:

foi iniciado o processo

de decantação.

Eu sei,

encontro-me sob escombros.


* Jornalista, dedica-se a diversos gêneros literários. Entre outras atividades, atua em alguns programas “O prefácio”, sobre livros e literatura. Um deles é o programa Comunique-se, levado ao ar pela TV interativa ALL TV (2003/2004). Apresentou, também, “Paisagem Feminina”, pela Rádio Gazeta AM (1999), além de crônicas diárias na Rádio Bandeirantes e na Rádio Gazeta — emissoras das quais foi redatora, repórter, locutora e editora.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Enfim, Saramago, por Evelyne Furtado

Evelyne Furtado (*)



Demorei a ler Saramago. Além de um ou dois artigos eu não lia o autor português, ganhador do Nobel, por pura e assumida antipatia. Ressalvo que em um dos artigos, lido logo após o atentado às Torres Gêmeas, vislumbrei um pouquinho de sua genialidade, mas não quis ver mais.

Quando abria ao acaso um dos livros de José Saramago, com títulos muito interessantes, dava-me uma preguiça enorme de gastar meu tempo naqueles períodos sem fim. Fechava o livro e não comprava.

Nas entrevistas eu via um homem arrogante, que me parecia ser auto-suficiente, meio dono da verdade e que de certa forma não se sentia bem em sua origem portuguesa. Alguns amigos portugueses reforçaram minha impressão. Isso me bastava para não querer ler Saramago.

Se era para ler um Nobel da Literatura eu já lia e me deliciava com Gabriel Garcia Márquez. Adoro sua maneira encantadora de falar sobre a vida. Se eu tinha que escolher autores portugueses, já me sentia redimida por ter lido e relido Eça de Queiroz de quem me orgulho ter uma edição comemorativa do seu centenário em exemplares pesadíssimos que herdei do meu avô. Sem falar de Fernando Pessoa, que fez com que eu me interessasse em ler mais poesia. Principalmente quando na pele de Caeiro.

Claro que já gostava dos brasileiros Drummond, Manoel Bandeira, Cecília Meireles e da doce Cora Coralina, mas "me" vi nos versos de Pessoa. Li muito até chegar a Saramago. Li boa é má literatura, pois só me guiava o prazer, que muitas vezes nos leva às atitudes impulsivas e à fuga da realidade.

Não me arrependo. Sou assim e assim sigo. Aos poucos fui lendo uma página e outra do português Saramago, então optei pela leitura mais fácil. Durante um vôo comecei a ler “As Intermitências da Morte” e o interesse veio naturalmente a cada página. No quarto do hotel, antes de dormir, continuei a leitura leve e com especial senso de humor.
De repente a luz.

Encontrei o gênio em uma fábula onde a morte se cansava da ingratidão dos humanos e fazia uma greve. Saramago vai nos mostrando após um breve momento de euforia geral, o caos que a ausência da morte poderia causar. A "imortalidade" narrada por José Saramago incomoda o Estado, a Igreja, os hospitais, as casas de idosos e a própria vida das pessoas comuns.

Convicções férreas são abaladas, inclusive a fé, o amor e as relações humanas. A ausência da morte põe a vida de pernas para o ar. Ela, a morte, é personagem de uma romance. "Nunca dorme", mas vê TV, hospeda-se em hotel, deslumbra-se em um concerto de violoncelo, e não ensaia, pois na verdade atua em um jogo de sedução, digno dos melhores sedutores, com o músico e ganha.

Por enquanto, resumo meu encontro com Saramago aqui e já me rendo à sua genialidade, não é qualquer contador de estórias que nos faz rever a vida e a morte.

* Jornalista, poetisa e cronista em Natal/RN.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Domingo do almoço indigesto e um pouco de merlot, por Luís Delcides R. Silva

Luís Delcides R. Silva (*)



Onze e quinze da manhã, segui até a casa da minha amiga e parceira de trabalhos. Pois, estamos traçando algumas estratégias e planos para começarmos um trabalho de comunicação integrada.

Ao chegar na casa da morena, ela tinha acabado de acordar. Resolveu se distrair com a amiga e virou a noite dançando. A bonitona estava com uma cara de sono, mas tomou um banho para despertar e se produziu muito bem e fomos à visita de 2 contatos.

Chegamos na Aclimação. Visitamos uma padaria que não estava em seus dias felizes. Ela fica na Loureiro da Cruz com a Saturno. Prédio mal-conservado, abandonado, comida horrorosa, que não consegui comer. Vassouras jogadas, plantas mortas.

Um dos sócios era obeso e tinha dificuldades para caminhar. O sujeito nos deixou falando sozinhos e foi embora. Chegou o outro sócio, mal-humorado, irritado. A minha parceira disse: “Quer saber, vamos embora, vamos a outra cafeteria!”

Antes, uma passadinha no Recanto Doce. Ao chegar no estacionamento, tomei uma bronca da bela jovem. Ela me chamou atenção que deveria ser mais gentil com ela e abrir a porta do carro para ela entrar.

Procurei ser bastante gentil com ela em todos os momentos. Ao chegar na cafeteria, conversamos com o proprietário e almocei de verdade. Uma massa acompanhada de um Merlot Francês. O atendimento do maitre foi maravilhoso e marcante. Ele fez questão que eu experimentasse o vinho para que o meu paladar o aprovasse. Esse foi o grande diferencial do atendimento na cafeteria.

Ao voltar para o apartamento dela, fiz questão até de recolher as canecas de chá. Procurei tratá-la muito bem. Ela me fez mais um alerta: Deveria perder mais a fala de menininho, ter uma fala mais firme. Antes um elogio, disse que sou um ótimo gestor, mas precisava perder alguns vícios na fala e ter uma postura mais masculina com relação às mulheres.

Encerrei o domingo indo para minha casa. Garoa que sujava o pára-brisa e ao chegar no meu quarto, dormi. Mas até hoje não esqueci os conselhos da minha amiga e aprendi a ser mais homem perante uma mulher. Sempre ponho em prática os conselhos da bela morena.

* Micro-empresário e estudante de jornalismo. Escreve para seu blog pessoal "casos urbanos" www.luisdelcides.blogspot.com

sábado, 5 de julho de 2008

Assim me chamo, se lhe pareço, por Urariano Mota

Urariano Mota (*)



Vontade tenho de fazer uma afirmação geral, categórica: o nome da gente é destino. Mas quando reflito sobre isso, descubro que apenas cometi o título de um tango. Ou uma imensa bobagem. Por isso digo agora, mais restrito e conformado: o nome de algumas pessoas é destino. Como este meu, Urariano.

Mais de uma vez, em mais de uma oportunidade, esse meu nome exige ser repetido a quem o escuta pela primeira vez, e ainda assim, mais de uma vez, sofre equívocos. Para ser matemático, direi que a cada dez vezes que me apresento, recebo de volta nove traduções. No mínimo.

- Urano? Uriano? Uraniano? Ulariano?...

Algumas traduções não lembro, porque a memória, sábia, prefere não guardar. E não exagero. Se alguém põe dúvida, consulte o Google. Ali verá Urariano Mota, Uraniano Mota, Uriano Mota, todas versões, por incrível que pareça, referentes a este homem que agora lhes fala: um ser simples, camarada, generoso, simpático, pouco feio, se não exagero. Notem o agravante: o Google remete a informações escritas, a textos escritos e assinados por mim, não ouvidos, mas, ainda assim, transformam – os outros, os que não aceitam este destino –, transformam a consoante r em n, comem ra, uma sílaba inteira, e outros crimes e variações, porque grande e imaginoso é o engenho humano.

Nome também é costume. Quando eu nasci, é claro, eu não sabia que me chamava assim. Depois, antes dos 5 anos, minha mãe dizia que ao ouvir Urariano, eu olhava para os lados, como se procurasse outro. Esquizofrenia tem história, dizem os analistas. Esquizofrenia tem nome, digo eu. O certo é que me acostumei a mim mesmo aos poucos. Primeiro, me disfarçando em Ura, Urá, Urari, Urare, Ulari, Ulare, Uriano, Uraniano, Orare, Orariano, conforme os outros me chamavam. Havia algum encanto em ser vários, no fluxo da intimidade e educação das pessoas. É certo, ninguém jamais me chamou de Unamuno. Mas de Tertuliano, sim, em homenagem a um jogador de futebol do São Paulo, de apelido Terto. Grande artilheiro.

Quando atingi a maturidade, quero dizer, quando atingi a idade que para outros é a maturidade, porque continuei a fazer desastre em cima de desastres, eu não mais me disfarçava no que me chamavam. Ouvia o personagem que me queriam dar, e me dizia, “Que estúpida, essa pessoa não vê que me chamo Urariano? Tão simples”. Era a vitória do costume. A essa altura eu era este nome em silêncio e contrariado. Depois, em acontecimentos mais próximos, cheguei a ouvir em uma sala de ultra-sonografia, de uma enfermeira:

- O seu nome é mesmo este? Senhor, eu não consigo. Urururi.. senhor, o seu nome é um trava-língua.

Simpática. De fato, com isso ela me fez esquecer da imagem no vídeo acima de mim.

Mas não há só desvantagem em ser registrado com este substantivo raro. Se não cometo algum crime, algum delito arbitrado no Código Penal, porque seria com mais facilidade preso, algemado e julgado, nem sempre nessa ordem, acredito existir alguma vantagem de compensação. Algo como um bônus que se concede aos animais ameaçados de extinção. Lembro que na Caixa Econômica, ao solicitar a retirada do meu Fundo Garantia, uma funcionária me perguntou, para consulta em um banco de dados da Caixa:

- Nome?

- Urariano.




- Do quê?




- Minha filha, não tem do quê. Escreva só – e repeti, precavido, letra por letra – u-r-a-r-i-a-n-o.




E ela, triunfal:




- O senhor está enganado. Tem outro aqui.




E eu, sem ver as informações que apareciam na tela do seu computador:




- O engano é seu. O “outro” é Urariana. Minha irmã, nascida em 1955.




E era.




Por isso digo ao fim: podem me chamar do que desejarem, que não me importo. Assim sou, se lhes pareço. De Ura a Orare, passando por Uriano e Orariano, não há problema. Só não me chamem de Urariana. Essa minha irmã é uma senhora muito brava.




* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

terça-feira, 1 de julho de 2008

A lógica das crianças, por Risomar Fasanaro

Risomar Fasanaro



Olhos vivos, redondos e negros feito duas caiuias, fruta do mato lá de Pernambuco que se perdeu na memória, na distância, no sabor roxo que me tingia a boca e ficou em minha saudade. São os olhos de Otávio.

Esses dias eu estava com gripe e um pouco deprimida; pedi-lhe então que me contasse uma estória. Afinal, algumas vezes na vida é preciso inverter os papéis.

Ele chegou de mansinho, encostou os dois cotovelos na cama, apoiou o rosto nas mãozinhas e começou a me contar a estória do Peixinho Teimoso que desobedece à mãe e vai a um cantinho proibido, lá no mar e, lá, é comido por uma cobra graannndeee, feeiaaaaaaaa e concluiu: “vovó, você tomou gelado, não tomou? Você parece o peixinho teimoso...Mamãe disse que num pode tomar gelado. Que gelado dá gripe...”

Ah... a inocência das crianças... Penso, enquanto o escuto: se os conselhos que minha mãe me dava e que até hoje desobedeço, se resumissem apenas às bebidas geladas, provavelmente muitos sofrimentos teria evitado ao longo da vida.

Após contar a estória, ele pega uma pequena imagem do arcanjo Miguel empunhando uma espada, e com um dos pés esmagando a cabeça do demônio, imagem que há anos me acompanha e me pergunta quem é “aquela”. Respondo-lhe que não é “aquela” e sim aquele, o arcanjo Miguel. E começo a lhe contar (do pouco que sei) o que é um anjo, um arcanjo...

Ele insiste: “por que ele usa saia e brinco?” E eu lhe explico que não é saia, que é a roupa dos anjos, e que ele não está de brinco. Mas ele insiste: “tá sim, vovó, olha aqui”. Pego a estatueta e percebo (como nunca vi isso antes?) que respingou tinta em uma das orelhas da imagem. Explico-lhe que ao pintar, o artista deixou escapar um pingo, por isso parece um brinco. Que às vezes, quando a gente pinta ou escreve, comete erros, é mal-interpretada...

E ele, surpreso: “o que é interpretada, vovó?”. Como explicar a uma criança de seis anos o que é interpretação? Mas tento: “é a forma como as pessoas entendem o que a gente faz, diz, escreve... Às vezes ficam magoadas por um determinado comportamento que a gente teve e a gente nem percebeu, não teve a intenção de provocar aborrecimento e a pessoa fica mal e o pior, a gente também fica triste, por ter provocado uma tristeza no outro”.

Ele continua: “Onde os anjos vivem, vovó?” Respondo o que a vida inteira ouvi dizer, ainda que hoje só acredite nisso às segundas, quartas e sextas-feiras, e que, a esta altura da vida, já nem sei mais se a igreja continua contando a mesma história. Afinal mudaram o Pai Nosso, o Credo, o Glória ao Pai...Mas, enfim... Digo que os anjos vivem no céu e, às vezes, descem à Terra, mas nós não os vemos. E ele pergunta: “por quê?” “Porque são espíritos, seres feitos de luz...”

E ele se alegra: “Ah...já sei. Lá no céu eles são iguais a gente, não é vovó? Um vê o outro porque é tudo igual não é? Mas aqui a gente não vê eles...” “Sim, é isso”, respondo sem muita convicção... Ele revira a estatueta entre as mãos, e nesse preciso instante descobre o demônio sob o pé direito do arcanjo, que está prestes a atacá-lo com uma espada.

“E esse aqui, vovó, quem é?”, pergunta, apontando para o demônio. Respondo que esse é o demônio e ele quer saber quem é. Conto-lhe toda a história de Lúcifer e de sua expulsão do Paraíso. Mas sua reação me surpreende. “Ah, vovó... coitadinho!... O anjo está pisando nele e ainda vai matar ele com essa espada?”

Fico sem ação. Como justificar aquele assassinato a quem já sabe que não se deve matar? Paro e penso na lógica das crianças, na pureza da visão sem preconceitos. Afinal, para ele quem é o mau? Àquele que é ameaçado e esmagado pela lança ou o Arcanjo? Penso em lhe explicar que o mal precisa ser destruído pelo bem, antes que nos cause um mal maior, muito embora tenha consciência de que nem sempre a gente consegue sequer distinguir o bem do mal, mas depois reflito: será que devo lhe ensinar isso ou, ao contrário, tenho muito a aprender com ele?

Não será que mesmo aquilo que identificamos como sendo o mal merece mais a nossa piedade que a nossa ira? Olho para ele com aquela (in)expressão de algumas cenas de final de capítulo das novelas da TV e silencio. Um dia ele irá aprender, sozinho, que nem sempre o bem é bem assim como nem sempre o mal é mal e que estava certo o Poeta quando escreveu: meu bem, meu bem, meu mal.

(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

A lógica das crianças, por Risomar Fasanaro

Risomar Fasanaro



Olhos vivos, redondos e negros feito duas caiuias, fruta do mato lá de Pernambuco que se perdeu na memória, na distância, no sabor roxo que me tingia a boca e ficou em minha saudade. São os olhos de Otávio.

Esses dias eu estava com gripe e um pouco deprimida; pedi-lhe então que me contasse uma estória. Afinal, algumas vezes na vida é preciso inverter os papéis.

Ele chegou de mansinho, encostou os dois cotovelos na cama, apoiou o rosto nas mãozinhas e começou a me contar a estória do Peixinho Teimoso que desobedece à mãe e vai a um cantinho proibido, lá no mar e, lá, é comido por uma cobra graannndeee, feeiaaaaaaaa e concluiu: “vovó, você tomou gelado, não tomou? Você parece o peixinho teimoso...Mamãe disse que num pode tomar gelado. Que gelado dá gripe...”

Ah... a inocência das crianças... Penso, enquanto o escuto: se os conselhos que minha mãe me dava e que até hoje desobedeço, se resumissem apenas às bebidas geladas, provavelmente muitos sofrimentos teria evitado ao longo da vida.

Após contar a estória, ele pega uma pequena imagem do arcanjo Miguel empunhando uma espada, e com um dos pés esmagando a cabeça do demônio, imagem que há anos me acompanha e me pergunta quem é “aquela”. Respondo-lhe que não é “aquela” e sim aquele, o arcanjo Miguel. E começo a lhe contar (do pouco que sei) o que é um anjo, um arcanjo...

Ele insiste: “por que ele usa saia e brinco?” E eu lhe explico que não é saia, que é a roupa dos anjos, e que ele não está de brinco. Mas ele insiste: “tá sim, vovó, olha aqui”. Pego a estatueta e percebo (como nunca vi isso antes?) que respingou tinta em uma das orelhas da imagem. Explico-lhe que ao pintar, o artista deixou escapar um pingo, por isso parece um brinco. Que às vezes, quando a gente pinta ou escreve, comete erros, é mal-interpretada...

E ele, surpreso: “o que é interpretada, vovó?”. Como explicar a uma criança de seis anos o que é interpretação? Mas tento: “é a forma como as pessoas entendem o que a gente faz, diz, escreve... Às vezes ficam magoadas por um determinado comportamento que a gente teve e a gente nem percebeu, não teve a intenção de provocar aborrecimento e a pessoa fica mal e o pior, a gente também fica triste, por ter provocado uma tristeza no outro”.

Ele continua: “Onde os anjos vivem, vovó?” Respondo o que a vida inteira ouvi dizer, ainda que hoje só acredite nisso às segundas, quartas e sextas-feiras, e que, a esta altura da vida, já nem sei mais se a igreja continua contando a mesma história. Afinal mudaram o Pai Nosso, o Credo, o Glória ao Pai...Mas, enfim... Digo que os anjos vivem no céu e, às vezes, descem à Terra, mas nós não os vemos. E ele pergunta: “por quê?” “Porque são espíritos, seres feitos de luz...”

E ele se alegra: “Ah...já sei. Lá no céu eles são iguais a gente, não é vovó? Um vê o outro porque é tudo igual não é? Mas aqui a gente não vê eles...” “Sim, é isso”, respondo sem muita convicção... Ele revira a estatueta entre as mãos, e nesse preciso instante descobre o demônio sob o pé direito do arcanjo, que está prestes a atacá-lo com uma espada.

“E esse aqui, vovó, quem é?”, pergunta, apontando para o demônio. Respondo que esse é o demônio e ele quer saber quem é. Conto-lhe toda a história de Lúcifer e de sua expulsão do Paraíso. Mas sua reação me surpreende. “Ah, vovó... coitadinho!... O anjo está pisando nele e ainda vai matar ele com essa espada?”

Fico sem ação. Como justificar aquele assassinato a quem já sabe que não se deve matar? Paro e penso na lógica das crianças, na pureza da visão sem preconceitos. Afinal, para ele quem é o mau? Àquele que é ameaçado e esmagado pela lança ou o Arcanjo? Penso em lhe explicar que o mal precisa ser destruído pelo bem, antes que nos cause um mal maior, muito embora tenha consciência de que nem sempre a gente consegue sequer distinguir o bem do mal, mas depois reflito: será que devo lhe ensinar isso ou, ao contrário, tenho muito a aprender com ele?

Não será que mesmo aquilo que identificamos como sendo o mal merece mais a nossa piedade que a nossa ira? Olho para ele com aquela (in)expressão de algumas cenas de final de capítulo das novelas da TV e silencio. Um dia ele irá aprender, sozinho, que nem sempre o bem é bem assim como nem sempre o mal é mal e que estava certo o Poeta quando escreveu: meu bem, meu bem, meu mal.

(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.