quarta-feira, 23 de julho de 2008

Tolerância zero, por Aliene Coutinho

Aliene Coutinho(*)



Todos os dias, ele acorda no mesmo horário, toma banho, faz a barba e vai ao trabalho, onde cumpre “britanicamente” as obrigações. Nunca cometeu excessos, só o de ser comedido e perfeccionista. Naquela sexta-feira, ele bem que resistiu ao convite de esticar até um barzinho. Nunca foi dessas coisas, é o tipo casa-trabalho, mas era aniversário de uma colega muito especial, a única na repartição que não tirava sarro da cara dele, que dividia a mesa no almoço, e que lhe sorria com cumplicidade ao longo do dia, quando algum engraçadinho resolvia encher seu saco o criticando por deixar tudo tão arrumadinho, ou pela roupa impecável, onde até os jeans tinham vinco.

Ele não podia perder a oportunidade de ficar ao lado dela por mais algumas horas. Quase conseguiu sentar-se ao lado dela, mas no empurra-empurra, acabou ficando na outra ponta da mesa do boteco barulhento. Não ia dar nem para puxar conversa. Pediu uma limonada suíça, enquanto o resto da turma, inclusive a aniversariante, começou a se encher de choppe. E vieram os brindes, e um pedido dela: “Oh, João, só hoje e por mim, bebe uma cervejinha com a gente”. Quem resiste a isso? E João atendeu. Foram um, dois, três, quatro choppes. E ele que nunca havia bebido, mudou por completo.

Começou a falar alto, contou uma piada sem graça e tirou a moça para dançar. Detalhe: o bar não tinha pista de dança. Mas, ela foi. E ao som ambiente de um sambinha, colou o corpo no dele, e lhe provocou arrepios. Ele a apertou com mais força. Ela deixou. E ficaram assim, como se não houvesse mais ninguém por perto. João estava feliz. Se soubesse que uns copinhos de bebida iam fazer aquele milagre, já teria saído com as aqueles chatos e metidos do trabalho há mais tempo. Nas nuvens, perguntou se podia levar a moça em casa. E mais uma vez ela topou. Foi à mesa, pegou a bolsa, e deixou todo mundo de boca aberta, quando disse que estava indo embora com ele. E os dois saíram de mãos dadas.

A cabeça de João rodava. Só podia ser por ela, pelo cheiro dela, pelo som da voz e das risadas dela. No carro, ligou o som e ela ouviu com surpresa “Se” de Djavan. Nem acreditou que ele pudesse gostar de quem era, para ela, o maior cantor dos últimos tempos. Os dois cantarolavam a música quando viram a poucos metros na frente uma blitz do Detran. Mais uma operação bafômetro de fim de semana. Ele havia lido nos jornais que desde que implantaram a Lei Seca isso havia se tornado comum, mas isso até então não o preocupava em nada.

Em dezesseis dias do “tolerância zero” para dirigir depois de beber, duzentos motoristas do DF foram pegos em flagrante e tiveram a carteira de habilitação suspensa. Tudo passou muito rápido em sua cabeça. E ele rezou para que não fosse parado. Mas não teve jeito. Abordado, apresentou os documentos, e só ao descer do carro percebeu que mal conseguia ficar em pé. No teste do bafômetro a sentença: 0,59 mg de álcool por litro de sangue, o suficiente para que João perdesse o direito de dirigir por um ano, tivesse o carro recolhido e fosse levado para delegacia. E tudo que ele lembra é do sorrisinho dela, aquele que ele tanto conhecia, ao entrar no táxi e sumir noite adentro, sem dizer ao menos “até segunda-feira!”.

(*) Jornalista e professora de Telejornalismo

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