terça-feira, 1 de julho de 2008

A lógica das crianças, por Risomar Fasanaro

Risomar Fasanaro



Olhos vivos, redondos e negros feito duas caiuias, fruta do mato lá de Pernambuco que se perdeu na memória, na distância, no sabor roxo que me tingia a boca e ficou em minha saudade. São os olhos de Otávio.

Esses dias eu estava com gripe e um pouco deprimida; pedi-lhe então que me contasse uma estória. Afinal, algumas vezes na vida é preciso inverter os papéis.

Ele chegou de mansinho, encostou os dois cotovelos na cama, apoiou o rosto nas mãozinhas e começou a me contar a estória do Peixinho Teimoso que desobedece à mãe e vai a um cantinho proibido, lá no mar e, lá, é comido por uma cobra graannndeee, feeiaaaaaaaa e concluiu: “vovó, você tomou gelado, não tomou? Você parece o peixinho teimoso...Mamãe disse que num pode tomar gelado. Que gelado dá gripe...”

Ah... a inocência das crianças... Penso, enquanto o escuto: se os conselhos que minha mãe me dava e que até hoje desobedeço, se resumissem apenas às bebidas geladas, provavelmente muitos sofrimentos teria evitado ao longo da vida.

Após contar a estória, ele pega uma pequena imagem do arcanjo Miguel empunhando uma espada, e com um dos pés esmagando a cabeça do demônio, imagem que há anos me acompanha e me pergunta quem é “aquela”. Respondo-lhe que não é “aquela” e sim aquele, o arcanjo Miguel. E começo a lhe contar (do pouco que sei) o que é um anjo, um arcanjo...

Ele insiste: “por que ele usa saia e brinco?” E eu lhe explico que não é saia, que é a roupa dos anjos, e que ele não está de brinco. Mas ele insiste: “tá sim, vovó, olha aqui”. Pego a estatueta e percebo (como nunca vi isso antes?) que respingou tinta em uma das orelhas da imagem. Explico-lhe que ao pintar, o artista deixou escapar um pingo, por isso parece um brinco. Que às vezes, quando a gente pinta ou escreve, comete erros, é mal-interpretada...

E ele, surpreso: “o que é interpretada, vovó?”. Como explicar a uma criança de seis anos o que é interpretação? Mas tento: “é a forma como as pessoas entendem o que a gente faz, diz, escreve... Às vezes ficam magoadas por um determinado comportamento que a gente teve e a gente nem percebeu, não teve a intenção de provocar aborrecimento e a pessoa fica mal e o pior, a gente também fica triste, por ter provocado uma tristeza no outro”.

Ele continua: “Onde os anjos vivem, vovó?” Respondo o que a vida inteira ouvi dizer, ainda que hoje só acredite nisso às segundas, quartas e sextas-feiras, e que, a esta altura da vida, já nem sei mais se a igreja continua contando a mesma história. Afinal mudaram o Pai Nosso, o Credo, o Glória ao Pai...Mas, enfim... Digo que os anjos vivem no céu e, às vezes, descem à Terra, mas nós não os vemos. E ele pergunta: “por quê?” “Porque são espíritos, seres feitos de luz...”

E ele se alegra: “Ah...já sei. Lá no céu eles são iguais a gente, não é vovó? Um vê o outro porque é tudo igual não é? Mas aqui a gente não vê eles...” “Sim, é isso”, respondo sem muita convicção... Ele revira a estatueta entre as mãos, e nesse preciso instante descobre o demônio sob o pé direito do arcanjo, que está prestes a atacá-lo com uma espada.

“E esse aqui, vovó, quem é?”, pergunta, apontando para o demônio. Respondo que esse é o demônio e ele quer saber quem é. Conto-lhe toda a história de Lúcifer e de sua expulsão do Paraíso. Mas sua reação me surpreende. “Ah, vovó... coitadinho!... O anjo está pisando nele e ainda vai matar ele com essa espada?”

Fico sem ação. Como justificar aquele assassinato a quem já sabe que não se deve matar? Paro e penso na lógica das crianças, na pureza da visão sem preconceitos. Afinal, para ele quem é o mau? Àquele que é ameaçado e esmagado pela lança ou o Arcanjo? Penso em lhe explicar que o mal precisa ser destruído pelo bem, antes que nos cause um mal maior, muito embora tenha consciência de que nem sempre a gente consegue sequer distinguir o bem do mal, mas depois reflito: será que devo lhe ensinar isso ou, ao contrário, tenho muito a aprender com ele?

Não será que mesmo aquilo que identificamos como sendo o mal merece mais a nossa piedade que a nossa ira? Olho para ele com aquela (in)expressão de algumas cenas de final de capítulo das novelas da TV e silencio. Um dia ele irá aprender, sozinho, que nem sempre o bem é bem assim como nem sempre o mal é mal e que estava certo o Poeta quando escreveu: meu bem, meu bem, meu mal.

(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

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