sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Sina, por Marco Albertim

Sina, por Marco Albertim

Marco Albertim (*)



Nasceu curumi miúdo, o negrinho. A negra Maria Rita mandara abrir as janelas, por causa do calor, para se distrair da dor do parto. João Grosso, o marido, chamara o arruado para a roda de coco. Sua mulher dissera: “Quanto mais gente, melhor... Assim eu não me lembro da dor.” Na casa de alvenaria não coube tanta gente. No terraço da frente, a vizinhança olhava a roda de homens e mulheres na sala, com João Grosso no meio. De fora do círculo, espremendo-se entre as paredes e a roda, o pouco de gente que conseguira entrar.
- Vamos umbigar, meu povo!

O grito de João Grosso, mais alto que o bulício, precipitou-se para o telhado sem forro, escapando entre as brechas, ganhando a rua.

No último quarto da casa, com janela para os fundos, a parteira munira-se de toalha, uma bacia com água morna, duas ajudantes. A negra Maria Rita, nua, nenhum trapo sobre os peitos suados. As negras se acercando, à espreita do curumi.
- Arreda! Arreda! – o calor queimava as entranhas da negra.

O menino pôs a cabeça para fora. A parteira orgulhou-se da experiência. O menino já tinha a metade do corpo fora do ventre. Ninguém dava conta a João Grosso, do progresso do parto. O negro, com a intuição provida nos olhos das mulheres em pé no corredor, gritou para os confins:
- Vamos umbigar, meu povo! – A reverência ao recém-nascido, colérica, rompeu o telhado.

A parteira segurou o curumi, fê-lo chorar. Quando o aproximou do peito da mãe, a negra distinguiu algum movimento nos pés do filho. Maria Rita confundiu com a marcação das três pisadas fortes da roda de coco.

Por ordem e costume de João Grosso, a cantoria durou até as cinco da manhã. Maria Rita dormiu com o filho entre o braço e o peito. O marido estirou-se na espreguiçadeira, ao lado da cama; não quis meter a mão na boa ordem da cama. Ao meio-dia, o menino mamou no peito da mãe. João Grosso tomou banho, almoçou, juntou inhames e batatas no caçoá sobre o lombo do cavalo; foi para a feira, dispôs tudo sob a barraca de madeira, coberta de lona. Recomeçou a rotina do pouco comércio.

Um mês e pouco depois, Maria Rita quebrou o resguardo puxando um balde com água do fundo do poço. Foi rezada pelo velho Fulô. O curandeiro disse que ficaria boa, mas não poderia ter mais filhos. Ela conformou-se, dizendo que não queria ser emprenhada outra vez.

O curumi foi batizado sem a presença de padre. Chamaram-lhe Sebastião. O nome espalhou-se fácil, porque a primeira sílaba perdeu a função na rotina insossa do arruado. O notário se recusou a registrar Bastião. O negrinho, de fralda, coberto com um timão de algodão fino, olhou desconfiado para ele; no regaço da mãe, enfiou a cabeça sob o peito dela. Saiu de lá firmado Sebastião. Foi recebido no arruado com o nome quase cotó, porque houve quem o chamasse Tião.

Cresceu ouvindo batuques, ganzás do coco de sala. Insistia com o pai para fazer a roda do lado de fora, porquanto os gritos das mulheres se soltariam no vácuo do arruado. João Grosso, herdeiro do coco em recinto fechado, dizia que as palmas, o sapateado no cimento da sala, tinham mais sonoridade; batuques e gritos se soltavam pelas brechas das telhas.
- Quando você virar sambador, leve o coco pra beira do rio. Mas não contrarie a vontade do povo. É assim que o costume se mantém.

Com doze anos, Bastião tinha o gosto pelo verso, a estrofe na língua. Nenhum outro ritmo fantasiou-lhe o juízo.

Com dezoito anos, viu o pai subir num coqueiro sem o uso das peias. O velho se valera da experiência, muitos o invejavam. Bastião confortou-se na inveja dos outros, nada dissera ao pai. João Grosso, lá em cima, foi surpreendido por um camaleão.O bicho, do lado de dentro do tronco da palha, tinha o focinho para fora, o rabo solto no outro lado. Com o rabo livre, chicoteou o rosto do negro. João Grosso sentiu o queimor, coçou o rosto com as duas mãos, perdeu o equilíbrio, despencou.

Conservou no rosto o esgar da agonia. O que mais chocou o filho, os amigos, foi o impacto do corpo no chão de barro duro. O baque confundiu-se com o tropel simultâneo do coração de cada um. Bastião chamou-o. Os amigos gritaram.
- Ninguém escapa daquela altura! – disseram.

Bastião acompanhou o enterro segurando o braço da mãe. Não choravam; deram conta da dor com rostos duros, frios. Enquanto o caixão descia à cova funda, repararam no filho o pescoço grosso, tão duro quanto a face. Daí em diante, chamaram-lhe Sebastião Grosso, na ausência, por reverência; e Bastião Grosso, na sua frente, no trato amistoso.

O comércio de inhames, batatas, tomou-lhe todo o tempo durante as semanas. No fim de cada mês, inda que não crendo ser capaz de assumir o lugar do pai no improviso das sambadas, chefiou as rodas de coco. Ao fim de um ano, creu-se com a alma fincada no costume dos negros bantos. Casou-se com 25 anos com a negra Cenira, moradora do Barro Vermelho, ceramista de divindades de umbanda. Veio morar com ele, com a sogra; deu-se bem com Maria Rita. As duas não rivalizavam no culto dos dotes do filho e marido.

Cenira, à vontade, trouxe uma imagem de barro do orixá Ogum. Conforme explicou, seu protetor no ofício de moldar no barro. Instalou-a na sala, num canto da parede, ornada com fitas azuis e verdes. No ombro do orixá, pôs uma espada cor de ouro. De uma ponta a outra, em cima, amarradas aos caibros dos telhados, dispôs fitas azuis, a cor preferida da divindade. A sala, tinha-se a impressão, acolheria uma multidão em festa.

Bastião dera palpites para compor a decoração. Maria Rita, com os olhos cansados, assuntou com folguedos de São João; mas quando se certificou de que se tratava de um altar para celebrar santos da umbanda, calou-se; melhor dizendo, juntou a experiência da idade, grunhiu sem se queixar. Também ela fora, um dia, mãe-de-santo; nunca assuntara com o filho sobre como se fiara com divindades, oferendas.

Em noites de celebração, Bastião se recolhia ao aposento; por fastio, indiferença, nenhuma censura ao atributo da mulher. Maria Rita sentada num banco de madeira trazido da cozinha, acendia o cachimbo que estropiara seus dentes; espiando com pose serena, sem mostrar-se amistosa nem hostil.
- Durma profundamente – dizia Cenira ao marido. Se Bastião ficasse com os sentidos nos transes, interromperia a incorporação dos santos.

Bastião no comércio, Cenira nas molduras; cada um adorando, a seu modo, o que julgavam ser o donativo sem registro no cartório. O casamento seguiu sem tropelia. A velha Maria Rita, assuntando com o cachimbo, deixou escapar um zumbido que o filho ouviu:
- Como foi isso?! – quis saber Bastião.

Ele cruzara a porta da cozinha para os fundos, rumo ao banheiro. A mãe, sentada no banco do lado de fora, segurara no cachimbo para dizer:
- Quem reza pouco, tem alma, tem paciência. Quem reza muito, tem medo, tem blasfêmia.
- A senhora nunca disse isso. Agora tira o cachimbo da boca para pregar susto. O que a senhora tá querendo dizer?

Não era de falar, Maria Rita; mas despregou-se de seu canto, confessou com perfeição de modo os urdumes do pensamento:
- A tua mulher pula feito uma cabra do mato, entorta a boca, grita por santo que nem os santos conhecem. Cuida que ela tem na alma um diabrete...
- Cenira não está prenha, mãe. Quando emprenhar, peço pra ela parar com o encosto.

Se o filho a tivesse provocado, teria dito sem expor-se, com precisão, que fora mãe-de-santo antes do casamento. Numa noite, incorporando o orixá, um homem simulou um transe para aproximar-se dela. Aproximou-se com solavancos nos ombros, nos braços, para roçar-se em Maria Rita. Tudo seria visto, mas legitimado pelo respeito à ferocidade de cada divindade. João Grosso nunca a censurara; às vezes ficava conversando do lado de fora; outras, juntava-se ao povo crente do lado de dentro. Percebeu, ele, os propósitos do falso médium. Sem nada dizer, puxou-o pela camisa, empurrou-o para fora até a rua. O estranho recuperou o prumo no primeiro empuxão. Não reagira de pronto, para fazer uso do último simulacro de transe. João Grosso enfureceu-se, empurrou-o com mais violência. Derribado na frente de todos, o homem tirou da cintura, do lado de trás da calça, uma faca quicé. João tomou-a, furou-lhe a barriga para matá-lo. Toda a lâmina da faca entrou, mas não cortou nenhum órgão dentro; passou rente ao fígado, espirrando sangue depois do próprio João retirá-la. O homem empapou-se de sangue, não morreu. João Grosso foi levado por dois soldados, sem resistência, para a cadeia. Ao chefe de polícia, não omitiu o propósito de matar o homem que se fizera de médium para se aproveitar da moça que seria sua mulher. O chefe de polícia acreditou, deixou-o preso por um mês; depois soltou-o sem abrir inquérito.

Bastião emprenhou Cenira na madrugada de uma segunda-feira, depois da celebração. Quando ela entrou no quarto, sem tirar o suor do rosto, do pescoço e por certo do ventre rijo, a sogra mirou-a sem tirar o cachimbo da boca. Maria Rita ocultava-se no cheiro do fumo, nos anéis de fumaça em volta do rosto. “Vai emprenhar com encosto e tudo”, previu a velha.

Um mês depois, o mênstruo não veio. Ela disse ao marido. À noite pulou feito um bode, agradecendo a Ogum, que a instigara para o sêmen no período fértil.
- Quando a barriga inchar – advertiu-a o marido -, você vai interromper a macumba. O menino que tá na sua barriga não sabe o que é xangô. Ele só pode escolher depois de crescido, adulto.

Cenira não disse sim nem não, sorriu submissa, com algum deboche entre os dentes. A barriga cresceu, dando conta de um curumi inquieto. Ela suspendeu as celebrações. Como não renunciara ao desassossego das ancas, seguiu Bastião nas toadas do coco. Sentava-se, mexendo com a cabeça, os ombros, as pernas. Não perdeu a impudicícia do andar; sem malícia, mas não perdeu. Alisava a barriga com gosto, apreciando a própria saúde, a do filho que, por certo, nasceria mirrado; mas seria troncudo como o pai.

Atraída pelo convite às umbigadas, entrou na roda do coco; segurava na mão de um homem ou de uma mulher, para fechar o círculo. À ordem de umbigar, soltava-se, dando três pisadas fortes para um lado e para o outro. Bastião tinha os sentidos nos versos e na mulher. Preocupava-se pouco, porque o ruído do ganzá não acudia os orixás; mas por estar seguido de um batuque, picava-o a suspeita de que Cenira pudesse confundir a trilha dos ritmos.

Ela chamou a atenção por mostrar-se prenha, barriga saliente, sem perder o porte, a graça do corpo. O vestido de algodão, fino, transparente, dando conta da calcinha rodeando a cintura larga; dorso de uma montaria de raça. Cenira tinha consciência dos dotes, era dócil, folgazona, colérica. A cólera não surgia com facilidade. Fitando-a nos olhos, distinguia-se acolhimento e hostilidade; conforme o trato, ela abraçava feliz ou... do contrário, às cegas, com raiva. Sebastião Grosso tinha razões para confiar na mulher.

Maria Rita, mais setenta anos, prostrada no banco de madeira, sem dar sinais de cansaço. Puxava ela mesma a caneca do poço para a água de seu banho; não queria ajuda, inda que fosse da nora. Falando só, deixando escapar a fumaça entre o cuspe nos beiços, não se admitia caduca. Não dava trabalho a Cenira, curtira-se na lida da casa enquanto o marido cuidava da roça. Vendo a nora enchendo a tina de madeira, no banheiro, para o banho de Bastião, não via razões para se entregar com desvario à macumba.
- Vote!... – grunhia.

A barriga de Cenira cresceu sem umbigadas na roda de coco; umbigava, inda que no último mês da gravidez, na cama com o marido. Ele coitava sem dó, como se fosse emprenhá-la duas vezes num só coito. Ao contrário de outras mulheres, não se sentia carente ou desprotegida. Por não ter esmorecido, ter puxado muita água da cacimba, teve um parto ligeiro, com agonia mas ligeiro. Fez força, espremeu os olhos. A criança nasceu, ela soprou-se aliviada. Quando o menino chorou, ela chorou feliz, dando-lhe o bico duro do peito.

Bastião soube na feira. Fechou o negócio, foi para casa espiar o primeiro curumi de sua lavra. À noite, a pedido da mulher, fez uma sambada com versos dando boas vindas ao filho. Maria Rita, que pouco sorria, mostrou os cacos de dentes para o primeiro neto. Lembrou-se do marido, não conseguiu chorar, mas curtiu-se na saudade de não tê-lo ali para apreciar o recém-nascido.

Com a lua cheia, os coqueiros balançando, a percussão da dança zunindo nos ouvidos, Bastião sentiu saudades do pai. Olhou em volta, gritou para Cenira ouvir, o vento levar para longe:
- Vamos umbigar, meu povo!

Cenira levantou-se da cama antes da hora, e não quebrou o resguardo. Um mês depois, estava na beira da cacimba puxando água para dar banho no filho. A do marido, ele mesmo a puxava de volta da feira.
- Já sei me cuidar, Cenira. O menino é que não sabe.
- O menino não! Ele tem nome...
- Qual vai ser o nome dele?
- Sebastião. O nome do pai.
- Vão lhe chamar Sebastião Grosso!...
- Não vai ser defeito. O pai se sente defeituoso por isso? Sebastião Grosso é nome de gente.

Quando o menino completou um ano, ela quis comemorar de seu jeito. Organizou um ritual com pompa, e estridência de tambores. A velha Maria Rita, de seu canto, grunhiu:
- Vote!

A festa se deu do lado de fora, para não acordar o filho.

Um homem que há muito não se via, apareceu sem se mostrar de vez; ficou rondando cada rosto, e não viu ninguém que o reconhecesse. Não estava tão velho, embora com estrias nos cantos da boca, dos olhos. A cantoria começou. A divindade foi chamada. Ele foi à venda mais próxima; de uma talagada, bebeu meio copo de cachaça. Curtiu-se de energia, de força; fez isso três vezes. Os olhos incharam, espremendo a vermelhidão; olhou para Cenira, perturbou-se com a sensualidade dos quadris da negra.

À meia-noite os tambores ficaram mudos. Suados, homens e mulheres foram para o terraço da casa. Cenira, Maria Rita e duas mulheres da vizinhança tinham cozinhado buchada de bode. Serviram bebida a quem pedisse. Bastião bebeu; o estranho também, sentindo-se quase familiar com a casa.

O menino não acordou. Cenira, mesmo se entregando à divindade, não conseguira incorporar nenhuma; tinha os sentidos nos batuques, na criança deitada em sua cama. Feliz, a mãe, com as velas acesas, as oferendas nos tachos de barro.

Com o recomeço do rito, a barriga cheia lhes tirara a energia para dar cobro às demandas dos santos. Madrugada alta, o estranho creu-se portador de uma guia; os meneios de Cenira puseram fim ao último resíduo de dúvida. Deixou-se incorporar por seus próprios instintos, pôs-se a sacolejar braços, ombros. Cenira, que tivera um transe breve, recobrou a memória, sentiu-se cansada. Sentou-se, enxugou o rosto na tira de pano azul sobre os ombros. Os tambores se calaram, a percussão foi recolhida. O estranho, contrariado, contrafeito, refez-se; sacudiu os ombros como para tirar de si o encosto, e saiu.

Cansados, com o estômago cheio, Bastião e Cenira não coitaram; faltou-lhes energia.

Maria Rita sonhou com o marido chamando o povo do arruado para umbigar.

O estranho, em casa, dormiu sem restabelecer o equilíbrio dos sentidos.

Bastião, na semana seguinte, juntou a roda de coco para sua homenagem ao primeiro ano de vida do filho. A mulher aplaudiu-o, apertou o filho no regaço.

O estranho apareceu, juntou-se aos homens, riu com eles. Entornou o copo de cachaça três vezes, creu-se mais varão que os outros.

Bastião gritou o primeiro verso:
Tem três coisas na vida
Que o homem não deve fazer
Comprar terra em questão
Fazer negócio sem ver
Casar com mulher falada
Vai ser corno até morrer

O estranho aprovou, crendo-se tão honrado quanto o fado que inspirara o verso. Entrou na roda, apreciando com olhos dissimulados as ancas de Cenira. Ficou do lado dela, urdindo umbigar-lhe com modos inocentes; umbigou-a. Ela sentiu; nem quando estava prenha alguém se aproximara tanto de sua barriga. Olhou para ele desconfiada, distinguiu o cinismo; votou-lhe, dali em diante, um ódio visceral. Bastião vira tudo, espreitando a reação da mulher; muniu-se do mesmo ódio nos olhos de Cenira. Aproximou-se do estranho, empurrou-o para fora da roda. Bêbado, o homem cambaleou, caiu; puxou do bolso de trás a quicé. Bastião tomou-a. A camisa do estranho abriu-se. Bastião viu uma cicatriz acima do cinturão; no mesmo local, enfiou a quicé.

A velha Maria Rita viu...

(*) Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

domingo, 26 de outubro de 2008

Pais e filhos, o conflito, por Urariano Mota

Urariano Mota (*)



“Travessias singulares – Pais e Filhos” é um livro sobre o qual os grandes jornais ainda não falaram. Mais um livro no silêncio, para todas as redações, poderia ser dito. É para romper essa paz dos cemitérios que alinhavo aqui algumas linhas.

“Travessias Singulares – Pais e Filhos” é uma antologia que reúne escritores grandes, magníficos, e, dói-me dizê-lo, pequenos. De Machado de Assis a J. J. Veiga, passando por Moacyr Scliar, Carlos Heitor Cony, Antonio Torres, Wander Piroli, Silviano Santiago, Raimundo Carrero. Todos unidos pelo tema da relação entre pai e filho, de norte a sul do Brasil, do século XIX ao XXI. Essa é uma relação que interessa a todos os brasileiros, de pais que faltamos a um companheirismo, até os filhos que não guardam com os seus algum amor. Um terreno de conflito, mágoa e afeto, já se vê. Nem precisamos associar o livro a Édipo, o Rei, que matou o rival para dormir com a mãe, nem precisamos lembrar aquela turbulência de Os Irmão Karamazov. Bastaria a referência do eterno Kafka, em Carta ao Pai.

Não tínhamos no Brasil até aqui algo sequer parecido. Não por falta de conflito, ternura ou guerra nessa relação, é claro. Não por falta de escritores que aqui e ali não se furtaram a essa coisa tão íntima quanto a relação com o útero materno. Uma relação-correspondência que nem sempre chega ao destinatário, fundamental para a definição da identidade, do caráter que somos. Fundamental até na sua falta. Lembro que na entrevista com Ubirajara, o sem-teto que virou funcionário do Banco do Brasil, ele chegou a dizer que a falta do pai, que o rejeitara, lhe doía mais que a fome.

Nesse livro agora vindo à luz participei de duas pequeníssimas maneiras. Na primeira delas, quando localizei o escritor Renard Perez, que muita gente tomava como perdido, desaparecido ou morto. Aos 80 anos, no Rio de Janeiro, Renard só se comunicava com o mundo pelo telefone, que nem sempre atendia. Estava sozinho, imagino que em depressão, porque havia perdido a esposa há poucos meses. Quando lhe pedi algum contato, algum email de amigo, ele me respondeu, “eu não tenho amigos”. Localizei-o com muita felicidade, em razão da sorte e da alegria que senti na sua voz, ao me dizer que há muito não ouvia uma voz nordestina. Renard é natural de Macaíba, no Rio Grande do Norte. Para saber o valor da sua força, recomendo a leitura do seu conto, presente nessa antologia, “A morte do pai”. É um soco, uma lição e uma denúncia.

Na segunda maneira, participo do livro com o texto “A casa de meu pai”. É o relato de um certo pai, brutal, brutalizado e brutalizante, cuja máxima pedagógica era “bato num filho como quem bate num homem”. Os poucos leitores agora compreendem por que disse lá no começo que escritores pequenos também estão nessa antologia. Entre esses não se encontram Domingos Pellegrini, Aluísio de Azevedo, nem o grande e até há pouco esquecido Renard Perez.

O feliz editor é Rosel Bonfim, da Casarão do Verbo. O livro está nas boas casas do ramo. Mas se em algum lugar do Brasil ou do exterior não chegar, escrevam para o email do editor, roselbonfim@hotmail.com . Se um livro salva um escritor, do nível de Renard Perez, deve ser lido e saudado. Se uma antologia nos fala dessa relação de guerra e paz, merece a nossa estima. Para nos lembrar que um dia fomos filhos, e seria bom que não repetíssemos os pais que recebemos. Por uma questão de consciência. Deus ou a humanidade condenam.

(*) Urariano Mota é pernambucano. Escritor, jornalista, publicou o romance Os Corações Futuristas, cuja paisagem é a ditadura Médici.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Julgamento da consciência, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



- Decidiram por quatro votos a três...

A juíza proferia a sentença e um filme autobiográfico transcorreu nos pensamentos do réu Valdomiro. Lembrou-se como conhecera a ex-esposa, dos tempos de namoro, do nascimento do filho, das constantes brigas, do dia em que ela o abandonou, quando a viu com o namorado pela primeira vez...

-... Os jurados do tribunal do júri da Comarca...

Inevitavelmente o dia em que decidira matar a ex-esposa apareceu no seu longa-metragem. As crises de ciúmes não o deixavam mais em paz...

-... Nos autos do processo 27179...

De soslaio fitou o assassino da sua ex-mulher, recordou como o encontrou e acertou tal homicídio. O Vergílio, um viciado em drogas, que por algumas pedras de crack realizou a execução. Valdomiro concedeu todos os detalhes necessários. O crime foi cometido no crepúsculo de uma sexta-feira, no estacionamento do shopping. Vergílio fora preso em flagrante, pois um dos seguranças do local vira o delito e o interceptara.

-... Pelo crime de homicídio, o réu Valdomiro...

Virgílio dissera no julgamento que matara a mando de Valdomiro. Instruído pelo Advogado, Valdomiro negou veementemente Há casos em que não importa quem tem a razão, ou verdade, e sim, o melhor Advogado.

-... Foi considerado inocente.

O filho do Valdomiro lia a carta que narrava o julgamento do pai, prescrita por ele, lágrimas escorreram. Não se comunicavam há trinta anos, desde o julgamento, quando foi morar com a avó materna. Valdomiro depois de inocentado viveu esse tempo todo recluso em casa, no interior do estado, como um condenado em regime domiciliar. Morreu sentado no sofá. A carta foi o último descarrego de consciência, precisava explicar-se ao filho. Finalizou a carta dizendo: A liberdade é uma dádiva dos homens de consciência tranqüila...

(*) Jornalista e cronista

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A prova de amor, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



- Desculpa, amor! Por favor?
- Não.
- Por favor: aceita essas rosas pelos menos. Elas são o símbolo do meu amor...
- Sei.
- Estou arrependido pelo que fiz...
- Que não tivesse feito, então.
- Aceita, por favor?
- Tentando me comprar, Luiz Henrique?
- Não! Pô... Tu também complicas quando quer complicar... O que fiz nem foi tão grave assim...
- Nãããããoo! Tu não achas grave, Luiz Henrique? Eu fico imaginando: se tu olhaste para aquela vagabunda estando comigo... O que não fazes quando estás sozinho, hein?
- Ai ai ai, Vitória! Eu te disse: eu só olhei porque me chamou atenção uma mulher estar de mini-saia em um dia friozinho...
- Tu achas que sou eu boba? Então, foi o friozinho e depois as coxinhas dela, a bunda... Faça-me o favor!
- Meu Deus! O que eu posso fazer para provar o meu amor? Que gosto realmente de ti? Para ser perdoado?
- Não sei. Não sei se tem perdão...
- Mulher quando quer complicar, vou te contar uma coisa...
- O que disseste?
- Nada não... Me diz: o que tenho que fazer para provar que é de ti que eu gosto?
- E será que gostas mesmo? Será que existe amor da tua parte?
- Já sei! Uma serenata! Eu canto pra ti:

Às vezes, no silêncio da noite
Eu fico imaginando nós dois
Eu fico ali sonhando acordado, juntando
O antes, o agora e o depois
Por que você me deixa tão solto?
Por que você não cola em mim?
Tô me sentindo muito sozinho!

- Chega Luiz Henrique! Quantas vezes vou precisar dizer que essa música me deprime?
- Ai ai ai, Vitória! Um poema, então? O Amor, do Fernando Pessoa. Lindo! Começa assim:

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer...

- Luiz Henrique, chega! A tua memória é fraca mesmo, hein? Ou tu não prestas atenção nas coisas que digo. Semana passada mesmo eu te falei que não gosto de poesia...
- Pô Vitória! Que droga mesmo! Nada serve. Não sei mais o que fazer para demonstrar que EU TE AMO!
- Sigh! ai-ai!
- O que foi? Por que esse suspiro?
- Repete, por favor?
- Repete o quê?
- A última parte “o eu te amo”.
- Vitória: eu te amo! Isso?
- Ai ai... Eu te amo! Eu te amo... Que lindo! Como é bom escutar isso. Ai amor... Fazia tempo que tu não demonstravas que me amava deste jeito...
- É?
- Ãran!
- Está bem então...
- Está perdoado, meu amor! Vem cá me dar um beijinho, vem...

(*) Jornalista e cronista