segunda-feira, 25 de maio de 2009

Vira em cinco, por Nei Duclós

Nei Duclós (*)



Calçada e asfalto no verão eram o piso da fornalha da tarde. Nem mesmo embaixo do tufo de árvores havia brisa, refresco, alívio para nossos corpos imobilizados pela sede. De olho no carrinho de picolé que passaria ao longe, anunciado pela corneta salvadora, contávamos os minutos que faltavam para nossos compromissos, quando colocávamos à prova a sola dos pés, grossa de tanto jogar no terreno baldio, situado num declive acentuado. A natureza íngreme do estádio definia a natureza de nossas disputas.

Como o tempo era infinito, a partida limitava-se pelo número de gols e não pelas horas que passávamos ao ar livre, nos atormentando com caneladas e gritos. Cada jogo ia até dez e virava em cinco. Disputava-se no par ou ímpar quem iria primeiro para a parte mais alta do terreno, pois, a cavaleiro, podia-se avançar sem muito esforço. Rapidamente, o time do andar superior alcançava o fácil placar de cinco contra qualquer coisa, pois, dali, tiro de meta era quase um pênalti. Todo lance era facilitado pela lei da gravidade. Bastava ao adversário do escrete de cima se jogar para frente que já era meio gol.

Mas, com a mudança de posição, a vantagem virava-se contra o próprio vencedor do meio tempo. O jogo então chegava ao empate terminal dos nove-a-nove, que transformava cada guri num guerreiro medieval, capaz de cortar o braço ou a perna de quem se aventurasse a ganhar a disputa. Não era apenas o tempo reservado à peleja que contava. Mas principalmente o que vinha depois, quando depositávamos nossa carcaça embaixo do umbu e as implicâncias, sarros e provocações atingiam o paroxismo. Os perdedores tinham gana de asfixiar os meliantes que se aproveitavam do resultado para exigir mandados, como ir buscar o picolé no calorão, por exemplo.

Era uma operação complicada. Queimava-se os pés em direção ao sorveteiro e era preciso trazer todas as encomendas numa velocidade que impedisse o derretimento da prenda. Isso costumava acontecer, provocando, aí sim, contendas realmente pavorosas, que arrancavam pedaços naquela pré-adolescência feroz, quando éramos apenas garotos e o mundo, como hoje, jamais se importava com a noção de eternidade que regulava nossas vidas.

(*) Autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Sem o meu cabeleireiro, por Gustavo do Carmo

Gustavo do Carmo (*)



Zuleide só cortava o cabelo com o Fred. Só ele sabia aparar as suas pontas e não deixá-lo armar. Somente o Fred podia pintar, alisar e fazer a escova. Além de tudo, era o seu único confidente. Só aceitava conselhos pessoais dele.

Quando chegava ao salão, os outros cabeleireiros a assediavam como abelhas, mas Zuleide só aceitava o Fred. Marcava horário somente com o Fred. Se ele atrasava, esperava. Quando não podia aparecer, voltava para casa (frustrada) e agendava um outro dia. Só fazia as unhas ou a depilação depois do corte pronto, pois tinha medo de perder a vez, já que o seu trabalho era muito concorrido. Fred atendia Zuleide em seu salão na Avenida Nossa Senhora de Copacabana.

Era um homem moreno, alto e forte. Pele e barba lisa como bunda de neném. Cabelos bem aparados. Casado, tinha dois filhos. De origem humilde, foi procurar emprego em um pequeno salão em Cascadura, que pertencia a duas irmãs.

Estava desempregado, prestes a ser despejado com a mulher e os dois filhos pequenos. Pediu uma oportunidade para varrer o chão do salão. Ao ser flagrado cortando perfeitamente o próprio cabelo em um dos intervalos do serviço, ganhou uma oportunidade para cuidar do cabelo de uma cliente – amiga das patroas – que serviu de cobaia. O corte chanel ficou perfeito. A mulher não só tornou-se fiel como recomendou os serviços de Frederico para as amigas, entre elas, Zuleide. Frederico foi promovido a cabeleireiro e passou a ser apelidado pelas donas e as clientes de Fred. Fez vários cursos na área de estética e beleza para se aperfeiçoar e regularizar a sua nova profissão.

Zuleide morava no Engenho de Dentro. Era uma moça muito bonita, morena como Fred, que tinha cabelos cacheados antes de alisá-los com o seu cabeleireiro preferido. Publicitária, também foi promovida a diretora, o salário aumentou e ela se mudou para Ipanema. Apesar disso, manteve-se fiel ao trabalho de Fred. Aparecia de quinze em quinze dias com o seu carro luxuoso na porta do salão no bairro do subúrbio.

A violência da cidade aumentou. O trabalho de Zuleide também. Tornou-se difícil para ela manter a fidelidade a Fred. Depois de um assalto que sofreu ao voltar do salão onde o amigo trabalhava, Zuleide ficou com medo de aparecer em Cascadura com o seu carro importado zero-quilômetro. Tratou de arrumar um emprego para ele em uma rede de salões de beleza em Copacabana, onde podia ir até a pé.

Com muita tristeza, Fred deixou as antigas patroas, que se transformaram na mãe que ele perdeu cedo. Em cinco anos, Fred também se destacou no novo local de trabalho e conquistou também a clientela de artistas e profissionais liberais renomados. Ganhou prêmios e muito dinheiro. Ficou rico.

Abriu o seu próprio salão de estética e beleza. O negócio prosperou. Tornou-se concorrido. Zuleide, claro, foi a sua primeira cliente. Porém, teve de se conformar em ser obrigada a marcar hora com o amigo, pela primeira vez. A moça ficou chateada no início, mas depois aceitou. Mas passou a ter ciúmes do cabeleireiro com outras clientes. A esposa também. Manicure do salão, cismou que o marido a estava traindo com Zuleide quando o via conversando alegremente com a cliente. Só tirou a idéia da cabeça, por um tempo, quando foi surpreendida com um jantar romântico e uma lingerie. Engravidou do terceiro filho.

Já Zuleide era tão obcecada pelo tratamento capilar de Fred que tinha pavor só de pensar na morte dele. Chegou até comentar durante uma sessão de pintura:

— Ai, Fred. Se você morrer eu nunca mais cortarei o cabelo na minha vida.

— Ih, deixa de bobagem, Zu. Eu tenho tantos cabeleireiros talentosos. Se você quiser eu te indico o René.

— Não. Só aceito cortar o cabelo com você. Se acontecer o pior, aí sim eu aceito a sua sugestão.

— Xi, vamos mudar de assunto? Detesto falar em morte.

Aconteceu o que Zuleide mais temia. Fred foi alvejado por seis tiros no peito, caindo inerte no asfalto frio pelo sereno das onze da noite. Saía do salão após um dia movimentado de trabalho e lucro. Estava se dirigindo para o carro estacionado em um rotativo na Constante Ramos quando sentiu o primeiro estampido quente em seu peito, vindo de alguém que havia tocado as suas costas. A féria do dia foi roubada.

O salão amanheceu aberto, mas sem atendimento. Apenas para os funcionários desolados comunicarem o triste acontecimento às clientes. Zuleide se desesperou. Fez questão de ir ao velório e ao enterro do cabeleireiro fiel e amigo. Comportou-se como a viúva. Chorou abraçada ao caixão. Fez escândalo. Assustou até as antigas patroas de Fred, que já estavam bem velhinhas. A verdadeira viúva aceitou, contrariada, as condolências dadas por Zuleide também aos três filhos de Fred, igualmente inconsoláveis. Os meninos estavam começando a trabalhar com o pai. O rapaz, como cabeleireiro e a moça como atendente. O menino mais novo não estava presente na capela. Ficou brincando na casa da avó materna, sem saber que vai crescer órfão.

Zuleide passou um mês de luto. Mandou até tingir algumas roupas de preto. Assim ia para o salão do amigo falecido e cortava o cabelo com René, um jovem humilde que teve a mesma trajetória de Fred, a quem também pediu um emprego. Mas René não conseguiu agradar a Zuleide, que detestou o seu trabalho e dos outros nove cabeleireiros do Freds Coiffeur.

Mudou de salão. Tentou cortar em Ipanema. Em um shopping da Barra, em Botafogo. Até na zona norte. Voltou a cortar no salão das ex-patroas de Fred, em Cascadura, já sob nova direção. Não se acertou com nenhum.

A polícia suspeitou de assalto, da viúva por causa de ciúmes e de René, homossexual apaixonado pelo patrão. Todos provaram inocência. As investigações chegaram até Zuleide, através da denúncia feita por René que, indignado pela humilhação que levou da nova cliente, se vingou, contando, em depoimento, o comportamento exagerado da antiga cliente no velório. Também acharam as suas digitais na pistola com silenciador. Zuleide confessou tudo.

Matou porque descobriu que Fred desmarcou um horário com ela só para atender a sua ex-melhor amiga, que lhe roubou o seu noivo, único homem por quem se apaixonou.

(*) Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A Sós, por Marcelo Sguassábia

Marcelo Sguassábia (*)


Olhares que se cruzam, dela e do cão. Do ponto de vista do cão, o olhar somente – o literal pousar de olhos sobre alguém ou alguma coisa. Para ela uma zona de conforto na arrumação de si, como se fosse possível um cessar-fogo entre os neurônios.

Poderia não ser um bicho, mas uma xícara, um poste, o que via não era absolutamente o que enxergava. Não havia a consciência de olhar o cão, nem no cão a de saber-se observado. Cara a focinho, aquele era o tempo presente dos dois.

A indolência que sentia lembrava talvez o fastio que se tem em casa de mãe após a janta generosa. Isso era nostálgico e reconfortante, a sensação do território conhecido, o nada além da posse precária daquele momento de pálpebras arcando.

Vovó morta, envolta em seda, o coro de filhas de Maria na trilha sonora, entregando junto ao padre o corpo à terra. Vovó se foi, é fato, ficou o cão e a urgência do que fazer dele.

Chove a fina e mesma chuva sobre finados e vivos, um bolero gira na vitrola arcaica. Delírios, xô que já é tarde. Deixem-na a sós com seu cão.

(*) Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A onça e o monte, por Juliano Luís Pereira Sanches

A onça e o monte, por Juliano Luís Pereira Sanches

Juliano Luís Pereira Sanches (*)



Num certo período do dia, o tempo e natureza pedem um espaço para os seres se desabafarem. Querem se expressar, contar o que sentem. De olhos e ouvidos aguçados, São Francisco de Assis e Grande Amigo, índio xavante, ouvem os pedidos e aparecem perto de um rio que abrilhanta o alto da montanha. Com sua astúcia, Grande Amigo põe bocas na pedra e no monte alto, sons nos lábios dos protetores da natureza, vida e movimento no que é inanimado. Para ajudar Grande Amigo, Francisco começa a fazer uma oração.
– Ó Criador, nos faça instrumentos de vossa paz. Fazei com que, todos nós, possamos amar, ao invés de esperarmos sermos amados, pois é dando que se recebe.

Todos se alegram com a chegada dos dois, tão percebida como o espetáculo da alvorada. De repente, os amigos pássaros começam a prestar atenção no intenso monólogo. Cheio de raiva e dores internas, o monte reclama sobre sua vida, e sente inveja da onça.
– Estou aqui há anos sem sair do lugar, e o que ganho com isso? Tenho que disfarçar ser pedra, quando sou ser, fingir ser inanimado, quando sou parte de um todo consciente. Queria correr como você. Passar em volta das amigas árvores e beber a água que o amigo rio lhe dá.

Francisco e Grande Amigo chamam a amiga onça, para ajudá-lo. A onça, com seu intenso rajado, não se incomoda com o irmão, que apesar de ser tão grande e majestoso, não reconhece a gigantesca força que tem dentro de si. Ela aconselha o monte.
– Sinta a poderosa rocha que há em você. O seu ganho é a sua existência, tão prazerosa e completa se for bem vivida. Cada um de nós faz a sua parte. O rio dá a água sem esperar algo dos outros, porque sabe que ele se completa a cada dia, em sua confiança, em sua verdade. Honro a cada momento que vivo. Em seu seio, quantas vidas você sustenta? As amigas plantas e os demais amigos animais encontram em você uma casa para viver e glorificar o Criador. Sinta o amor que os seus amigos vibram. Você é um todo.

À sombra do monte, a boca de uma pequena pedra começa a se mexer.
– Caro amigo, o agradecimento dá força e nos prepara para o que nos aguarda.

A vibração de todos surte efeito e o alto do monte se encanta de alegria com a chegada de um lindo arco-íris. A plantas e os animais fazem pares. A harmonia retorna a casa, ao coração dos seres. A festa da vida é retomada, para manter os seus belos prazeres.

(*) Jornalista, folclorista e poeta de Campinas. Foi repórter de assuntos gerais nos programas Sexta Cultural, Fractal, Jornal da Educativa e Bom Dia Campinas, da Rádio Educativa FM 101.9 (www.campinas.sp.gov.br). Atualmente, é apresentador, repórter e produtor do programa de jornalismo educativo Ponto & Vírgula da Rádio Educativa em parceria com a Secretaria de Educação de Campinas. Colaborador do Portal Sorocult (www.sorocult.com), e colunista do Jornalzen (www.jornalzen.com.br), de Campinas.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Sem palavras, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



- Meu amigo Joel, te prepara!
- Ué! Por quê?
- Olha pra trás e vê quem está vindo.
- Quem?
- Olha!
- Putz! Não acredito! Pior que ela está vindo aqui...
- A mulher é tua... Segura a fera! Será que vem te buscar?
- Com certeza! Vai fazer barraco de novo...
- Bah! Eu me lembro da última vez.
- Nem me fala! Nunca mais fui naquele bar de vergonha. Está perto?
- Arãn!
- Está com cara de braba?
- Não! Pelo contrário. Vem com um sorriso no rosto... Toda produzida... E...
- E o quê?
- Desculpa a indiscrição, mas a tua mulher está em forma, hein?
- Por que estás dizendo isso?
- A saia que ela está usando... Como posso dizer... Está deixando um belo par de coxas a mostra.
- Pára de olhar para a minha mulher, Fonseca!
- Foi só um comentário...
- Cadê ela?
- Ela... Ela... Ué! Cadê? Ah... Sentou-se em uma mesa lá perto do banheiro.
- Ai! Ai! Ai!
- O que foi?
- O que eu faço agora?
- Boa pergunta, meu amigo.
- Ela está olhando pra cá?
- Não! O garçom está lhe atendendo. Pediu uma cerveja pelo jeito...
- Meu Deus! Meu Deus! O que eu faço agora?
- Vai lá!
- Se eu for lá, ela vai querer vir sempre junto...
- E qual o problema?
- Acorda, Fonseca! Vê se eu quero vir pro boteco com a minha mulher...
- Fazer o quê...
- Fazer o que nada... Olha a mulherada na volta! Que pesadelo!
- Pois é...
- O que eu faço? O que eu faço?
- Ela está olhando pra cá!
- E?
- Acenou com o copo...
- Meu Deus!
- Olha Joel! Se eu fosse tu, eu iria lá... Já tens uns gaviões “rondando”!
- Não adianta mesmo, é aquele ditado: “mulher da gente é que nem Chuchu, não tem gosto, não tem cheiro, mas se tu não comer, os outros comem...”
- Joel e os seus ditados machistas! Vai lá se não quem vai se enquadrar em algum ditado de corno...
- Opa! Opa! Nem completa... Estou indo!

- Oi querida! Posso sentar?
- Não, Joel!
- Por que não?
- Porque não! Estou a fim de tomar uma cerveja sozinha. Não posso?
- Que palhaçada é essa, Marília?
- Por que palhaçada? Pode me dizer?
- Era só o que me faltava... Minha mulher freqüentadora de boteco.
- Ué! Por que só tu podes vir para uma mesa de bar tomar cerveja, hein? Qual o problema? Eu também gosto! Quantas vezes tu já chegaste em casa de madrugada, dizendo que só estava tomando uma cervejinha... Ingenuamente com os amigos...
- É... Hã... Hã... Hã!
- Pois é! Hoje é a minha vez...
- Mas...
- Mas nada! Pode saindo. Eu disse que não podia sentar... Essa cadeira vai ser ocupada.
- Está esperando alguém?
- Arãn!
- Quem?
- As mulheres dos teus amigos também já devem estar chegando...
- Como é que é?
- Isso mesmo que tu ouviste! A mulher do Breno, do Richard, do Guazzeli e até do Fonseca, que estava ali tomando cerveja contigo virão pra cá...
- Mas o que é isso? Complô das calcinhas?
- Ah! Toma.
- O que é isso?
- Ué! Não reconhece? A chave de casa...
- Pra quê?
- É melhor levar... Não precisa me esperar... Eu toco a campainha... Vou ficar por aqui tomando um choppinho ingenuamente com as meninas.

(*) Jornalista e cronista.