segunda-feira, 18 de maio de 2009

A Sós, por Marcelo Sguassábia

Marcelo Sguassábia (*)


Olhares que se cruzam, dela e do cão. Do ponto de vista do cão, o olhar somente – o literal pousar de olhos sobre alguém ou alguma coisa. Para ela uma zona de conforto na arrumação de si, como se fosse possível um cessar-fogo entre os neurônios.

Poderia não ser um bicho, mas uma xícara, um poste, o que via não era absolutamente o que enxergava. Não havia a consciência de olhar o cão, nem no cão a de saber-se observado. Cara a focinho, aquele era o tempo presente dos dois.

A indolência que sentia lembrava talvez o fastio que se tem em casa de mãe após a janta generosa. Isso era nostálgico e reconfortante, a sensação do território conhecido, o nada além da posse precária daquele momento de pálpebras arcando.

Vovó morta, envolta em seda, o coro de filhas de Maria na trilha sonora, entregando junto ao padre o corpo à terra. Vovó se foi, é fato, ficou o cão e a urgência do que fazer dele.

Chove a fina e mesma chuva sobre finados e vivos, um bolero gira na vitrola arcaica. Delírios, xô que já é tarde. Deixem-na a sós com seu cão.

(*) Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”.

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