domingo, 16 de novembro de 2008

Casos de família, por Urariano Mota

Urariano Mota (*)



Conversavam em um bar. Os amigos possuíam cada vez mais o hábito de conversar assim. Dessa vez conversavam sobre uma sombra que sempre os acompanhou, a família. Não da família em geral, da família em abstrato, mas de suas próprias famílias.

Dizia um narrador:

- É interessante como a família, como se fosse o lugar e a terra da fraternidade, resiste às mais duras experiências.

“É como o socialismo”, pensou um outro, mas nada disse, para evitar o assunto mais amargo. E por isso ouviu a continuação do primeiro narrador:

- A família não é a terra fraterna, de concórdia, onde todos somos humanos.

“Sei, e como sei !”, vontade teve de golpear a mesa o que falava em silêncio. Mas nada fez, a não ser amargar e ouvir.

- A minha irmã se encontra enferma, enferma e bem fraquinha. Ela mora em uma casa simples, que comprei à custa de economias, para que nela terminassem os dias a minha mãe e ela, que vive solteira. Pois bem. Acabo de saber agora que começaram um movimento... começaram: primos, primas, sobrinhos, bandidos em geral. Pois mal. Começaram um movimento para tomar-lhe a casa. Minha mãe tendo falecido, só restaria a minha irmã. Por isso alegam que ela perdeu a lucidez, e por isso eles, os lúcidos, querem fazê-la perder também a casa. Eu sei que de um ponto de vista legal isto não é simples. Mas eu temo o pior: que eles invadam a casa e passem a ditar as regras. E aí, meu amigo, o que fazer? Brigar na justiça, chamar a polícia, para expulsar gente do meu sangue?

“Como se combate uma praga de abutres? Como se luta contra uma praga de voantes? Eles tomam conta da lavoura, destroem tudo como nuvens que roubam o sol”. Assim pensa o que nada fala, e lhe chegam aos ouvidos, como se viessem de uma casa próxima, as discussões encarniçadas, as brigas ferozes, os insultos, as pancadas que saltavam como demônios em sua própria casa. Onde mesmo a terra da fraternidade? Então ele pensava que a sua família era mundiça, forma corrompida, corruptela de imundície, de gente imunda.

Um silêncio constrangido corre a mesa. Isso quer dizer, esse problema não tem solução. Isso quer dizer, para ser mais preciso, eu não vou me envolver com essa cruz, porque, afinal, tenho a minha, que é pesada e ninguém a carregará por mim. Parecem não ver, ou não querem ver, ou não podem ver que o problema de um homem é um problema de todos os humanos. Então procura-se um derivativo, como se a voz de Nat King Cole fosse uma solução, como se Stardust resolvesse o insolúvel, porque podemos todos ter um amargo que se torna suave. Diante de um problema irrespondível, cambiemos para outro problema. Então um segundo à mesa procura retomar o tema em outra frente, como se outro caminho fosse o mesmo, que muito ajudasse a ultrapassar o obstáculo.

- As famílias são felizes até o dia em que todos têm saúde e o mínimo para sobreviver. Eu sempre achei muito bonito que em minha casa, quando havia um só pão, esse pão sobrava, porque cada um deixava o pão para o próximo. Lindo, não é? Então um dia um inimigo me observou, que para isso muito nos são úteis os inimigos, eles vêem com muita argúcia a nossa ferida. Pois bem, ele me disse: “Isso acontece porque os teus filhos e mulher têm alternativa de comida. Se não houvesse nada mais que um pão, eles se matavam”. A única lei é a necessidade.

“Sei, e como sei”, afirma-se o terceiro amigo em silêncio. “A gente se acanalha devagar”. E como nada havia falado até então, fala:

- O remorso é um pecado sem perdão.

- O quê?

- Existem crimes que não prescrevem.

- É claro, é claro...

A conversa avança para outros pontos, para outros portos, para outros casos de família. Mas na sua consciência o silêncio escreve: “Eu confesso que não sabia o que era o amor. Eu não sabia, portanto, o que era a dignidade. Eu era apenas uma boca animal, só e somente uma carência oca, vazia, cachorra”. E então, como um criminoso que não suporta a vergonha de esconder mais o próprio crime, o amigo em silêncio fala:

- Eu já furtei o pão de irmãos menores, que passavam tanta fome quanto eu.

Um silêncio muito pesado toma de assalto a mesa. Até que um deles descobre uma remota salvação.

- Talvez os amigos cumpram aquela terra de fraternidade prometida. Talvez na amizade exista aquela família que nunca encontramos.

- É possível.

E depois, como uma prova de sangue:

- Eu gosto muito de Nat King Cole.

- Eu também.

- Eu também.

(*) Urariano Mota é pernambucano. Escritor, jornalista, publicou o romance Os Corações Futuristas, cuja paisagem é a ditadura Médici.

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