terça-feira, 30 de dezembro de 2008

À força, sempre, por Daniel Santos

Daniel Santos (*)



Uma estranha nave pousou na zona norte – alguém viu, e a notícia convulsionou a cidade. De licença no serviço, corri a casa, mas minha mulher, que me recebeu com um beijo frio demais, disse estar tudo bem.

Sua entonação átona me intrigou, e mais ainda quando, ao tocá-la, senti-lhe a aspereza da pele. A intuição alertou: não era ela! O corpo, sim, mas de resto ... Tentei, então, escapulir, e dois cunhados me detiveram.

Foi minha primeira e última reação, que lembre. Aí, chegaram vizinhos, amigos, familiares. Casa cheia, encostado contra a parede, quase experimentei o pânico, mas entendi: apenas me queriam junto deles.

Por que não? E cedi ao cerco. Claro, estranhei mutações no corpo da esposa; a fosforescência da pele, por exemplo. Mas, logo, manifestei iguais sintomas. Não lembro quem fui nem lamento quem hoje sou.

À noite, nossas mãos ganham pontos luminosos como constelações. Alguma estrela nos ausculta, logo nos chamará. E iremos. Que outro jeito! Afinal, também aqui estamos todos à força. Não tem sido assim sempre?

(*) Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de O Estado de S. Paulo e da Folha de S. Paulo, no Rio de Janeiro, além de O Globo. Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

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