segunda-feira, 9 de junho de 2008

Para uma nova idade, por Urariano Mota

Urariano Mota (*)



“Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante”.

Isso que toda a gente lê em Manuel Bandeira, no livro “Itinerário de Pasárgada”, longe está de ser uma verdade íntima, única e exclusiva do poeta. Mas é preciso experiência, é preciso tempo para ver e sentir o paradoxo da infância mais rica que a maturidade. E, a esta altura da idade e do parágrafo, várias idéias se cruzam.

A primeira delas é que a revelação de um artista, de um poeta, sempre nos parece a expressão de uma idiossincrasia, de uma sensibilidade mórbida ou de extremo delicado. Delicado aqui no pior sentido do adjetivo: delicado de frescura, de coisa de afeminado, delicado de melindres, de não-me-toques, de abusos nervosos. No entanto, toda a gente não nota, ou não quer notar, que esse extremo de sensível nos toca, em uma estranha empatia. E mais, a um ouvido interno confessamos, “como é bela essa finura que não sei expressar”. Pois assim foi também com essa frase de Manuel Bandeira, que até a manhã de hoje eu julgava uma coisa apenas engraçada, paradoxal, coisa de absoluta terra do poeta. Ainda que a tivesse guardada comigo desde 1984, e não sabia por quê.

A segunda idéia, segunda na ordem em que trago à luz estes parágrafos, foi que descobri esta verdade hoje, agora, há menos de 15 minutos, quando buscava escrever alguma coisa sobre uma velha nova idade. Mas isso exige um pequeno recuo deste instante.

Primeiro, às primeiras horas do dia, tentei escrever sobre a revolta do povo em Mianmar, sobre o papel redentor que tem a Internet nessa revolta. Mas escrever sobre isso exige mais tempo, juízo e pesquisa. Em respeito a meus poucos leitores, recuei, porque não devo escrever algo mais superficial do que eu. Depois, tentei falar sobre a pesquisa que mostra homens mais felizes que as mulheres. Eu até já me preparava para dizer que essa pesquisa compara inferno 1 ao inferno 2, mas o ambiente à minha volta hoje conspira contra os assuntos exteriores. Então me ocorreu que eu deveria escrever sobre o que não posso fugir neste dia: sobre uma nova idade com absoluto distanciamento, com uma distância científica, no sentido de pegar o assunto com objetividade, de uma forma exterior. Cheguei até mesmo a me socorrer do dicionário da Real Academia Española, para a definição de idade:

“3. f. Cada uno de los períodos en que se considera dividida la vida humana. No a todas las edades convienen los mismos ejercicios.”

Para o meu caso, para o texto de hoje, socorro inútil, já se vê. Só escrevemos bem, ou menos mal, sobre as coisas que nos atingem, que alcançam a nossa pessoa, ainda que não tenham ocorrido com a nossa pessoa. Então por que esse disfarce, essa máscara de nova idade geral, como um relato de pesquisa estatística?

Por isso, escrevo mesmo sobre a minha, e por isso retomo à segunda idéia. Nela, a primeira coisa a me assaltar o espírito foi perceber o quanto somos eufemísticos, o quanto somos plenos daquele eufemismo que é a cara mais bonita da ironia. É uma graça que sempre completamos nova idade quando envelhecemos. Que coisa bela, não é? Quanto mais adentramos as nossas reservas de forças, mais jovens ficamos. Vejam como ficou, até parece um princípio da filosofia estóica: quando mais buscamos as penúltimas reservas, mais ricos estamos. “De experiência, homem ingrato”, uma velha encoberta me diz. Então me veio, depois de notar essa bela ironia, não uma espécie de balanço, porque não sou louco para pesquisar saldo negativo, mas uma lembrança da passagem dos anos. E procurei neles o fundamental, o digno de ser revivido. Aquilo que tenha e tivesse sido um alumbramento, aquilo que nos enche de um gozo vital. Então me veio a bunda, o traseiro de Kim Novak, que descobri na infância em uma oculta revista Playboy. Parece que foi ontem, que digo?, parece que foi hoje, agora mesmo, nesta manhã. Depois, enquanto escovava os dentes (é sempre bom fazer essas coisas mecânicas com o próprio ser em outro lugar), eu me perguntava, sim, que mais? Aqueles anos terríveis da ditadura, aquele pesadelo permanente, que somente minorava com álcool e sexo brutal, sim, que mais, isto é o fundamental e o que mais pesa em ti?

Mas o cérebro, resistente, vagava por lugares e tempos mais longes. Vagava nos ciúmes que eu tinha por uma moça mais velha, porque ela recebeu namorado diferente de mim. O cérebro andava por brinquedos fundamentais, como o desenho a carvão nas calçadas, o cérebro viajava por, o quanto isto é fundamental (é isso, a gente escreve também para se descobrir), um boneco negro de nome Benedito, que um ventríloquo trazia para a frente do mercado público de Água Fria. O boneco falava, e me persegue até hoje. É um sonho que não me deixa. Eu sempre pedia à minha mãe, quando ela saía: “quando voltar, me traga o boneco que fala”. O cérebro vagava mais longe, até a minha cadela Xandu, uma cadela com olheiras, que um carro matou. O cérebro vagava mais, até que eu notei, enfim, que os anos mais dignos de serem vividos, revividos, estão na primeira infância. Então descobri, como uma coisa que não era só de Manuel Bandeira:

“Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante”.

Não é que a vida tenha parado depois. Não é nem mesmo que grandes e importantes fatos não tenham cruzado o nosso caminho nos anos de juventude e maduros. É a comparação, o cotejo dos primeiros anos com os vindos depois, que mostra a diferença a favor da primeira idade. E agora ouso acrescentar mais alguma coisa às linhas do maior poeta brasileiro. A consciência desses primeiros anos é que talvez seja o maior acontecimento, o saber que não poderemos mais reter aquela doçura do nunca visto antes. Ainda que seja uma consciência de compensação, com um travo, que nos faz até pensar que talvez fosse até melhor não tê-la, se em troca nos oferecessem os primeiros anos. Ainda assim, é melhor a consciência do perdido que a posse fugaz do que não podemos tomar, sorver em toda a plenitude. Isso porque é impossível guardar o frescor da infância com a experiência madura.

Quase impossível, deveria dizer. Agora há pouco recebi um telefonema de um filho distante, a mais de 2.000 quilômetros. E disse a ele que não devia se preocupar comigo, e prometi que não abandono o palco enquanto não realizar o que pretendo. Isso, pelo menos, nos próximos 20 anos, prometi. Ao que ele me respondeu, “Vinte, não. Trinta, pelo menos trinta”. E senti o seu voto como uma negociação, como um pedido de adiamento do encontro com a senhora implacável. E desligou o telefone. Um sabor de fruta de infância me veio então aos lábios. É bom saber que a gente é amado por quem a gente ama. Este é o regalo para um menino de 57 anos.

(*) Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

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