segunda-feira, 15 de junho de 2009

Assassino, coveiro e fotógrafo, por Fábio de Lima

Fábio de Lima (*)

Na minha profissão é mais comum se conviver com coisas tristes que felizes. A morte pode ser motivo de festa em algumas culturas de paises distantes, mas no Brasil é dolorosa e triste. Sempre foi. No meu caso, ainda pior, visto que lido com a morte matada. Quando se morre de doença alguém pode dizer: foi melhor para ele que ficar sofrendo. Mas, quando se morre assassinado, seja o morto uma pessoa boa ou ruim, sempre deixará saudade e tristeza no coração de alguém. Então, não saio por aí matando gente e dando risada. Meu trabalho é feito de forma sisuda.

Portanto, naquela quinta-feira fria de agosto, achei maluca a proposta de Zé Peru. Aliás, seu nome já me parecia maluco. Zé Peru nascera numa cidade peruana chamada Ambayama, ao norte de Lima. Veio para o Brasil com um irmão e dois primos quando ainda tinha 15 anos de idade. Foi carregador de caixas no mercado municipal de São Paulo, depois vendedor de temperos, e acabou montando uma padaria, também no centro da cidade, quando tinha pouco mais de 20 anos. Foi nessa padaria que viveu, atrás do balcão, até os 71 anos, quando faleceu vitimado por um infarto fulminante.

Bem, como é fácil notar, Zé Peru foi um lutador – imigrante que conseguiu vencer no Brasil às custas, exclusivamente, de seu trabalho. Mas, num certo momento da vida, um assaltante tirou Zé Peru do domínio de sua rotina. O malandro assaltou, seguidas vezes, a padaria de Zé Peru, e sem nenhuma cerimônia. Os assaltos eram à luz do dia, com arma em punho, ameaçando o próprio Zé Peru e também seus fregueses. Zé não teve dúvida – veio atrás de mim para contratar os meus serviços.

Histórias como essa, ouço, diariamente, no afazer de meu ofício. Mas, Zé Peru me trouxe uma história toda especial. Depois de negociar comigo o valor de meu pagamento, condicionou a entrega do dinheiro a um serviço extra que eu teria de fazer. Ele me contou que em Ambayama existe uma crença que quem é assassinado não pode ficar jogado sob sol ou relento.

Quem mata em Ambayama tem o dever de enterrar o defunto numa cova rasa, de forma que só a cabeça fique para fora da terra. Ainda segundo a crença, o assassino que não faz isso morre também, num prazo máximo de 13 meses. A morte pode ser natural ou não. Não cumprir o ritual é assinar a própria sentença de morte. Não bastasse, se o assassinato teve um mandante, descumprido o ritual, morre o mandante também, no mesmo prazo.

Eu confesso já ter escutado histórias estranhas. Na vida, acho que nada mais me surpreende. Mas aquele pedido de Zé Peru me deixou com a cabeça coçando. Afinal, eu era um matador e não um coveiro. Demérito nenhum à segunda profissão, mas acho que cada um com seu talento e o meu nunca foi de enterrar defunto e sim fazer defunto. Argumentei tudo isso para Zé Peru, mas ele esteve irredutível, e me disse que se eu não aceitasse o trabalho ele procuraria outro matador.

Zé Peru havia me oferecido mais que o dobro do que se pagava para um assassinato. Então, mesmo intrigado, aceitei o trabalho, sendo coveiro e tudo. E Zé ainda me pediu mais uma coisa. Disse que o acordo que faríamos era algo muito sério que envolvia o futuro de nossas vidas. Portanto, Zé precisava de provas que o homem, depois de morto, seria enterrado mesmo. Eu precisaria provar com fotos do corpo enterrado com apenas a cabeça para fora da terra. Eu achava que Zé Peru era doido, mas, mesmo assim, prometi para ele que faria todo o serviço da forma combinada.

Duas semanas depois do acordo com Zé Peru, eu, debaixo de uma fina garoa, num sábado de lua cheia, no bairro de Aricanduva, extremo da Zona Leste de São Paulo, num lamacento campo de futebol, às 3h27 da madrugada, eu batia cinco fotos. De Zé Peru, recebi o pagamento e o agradecimento na segunda-feira, na hora do almoço, numa lanchonete no bairro da Liberdade. Ele ficou com as cinco fotos e com a satisfação nos olhos ao ver o meu trabalho. Anos depois, tive notícias que ele havia morrido. Pelo que soube, a morte de Zé Peru aconteceu 13 meses depois de nosso último encontro.

(Trecho do livro DOCE DESESPERO, de Fábio de Lima, ainda em processo de escrita).
(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.

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